segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Pré-conceitos e outros monstros

Diz Marcelo: na Alemanha, vêem-nos (aos do sul) como caloteiros e preguiçosos. Contra tal imagem defende Marcelo que devíamos fazer um filme promocional para nos mostrarmos. Enfim, para mostrarmos uma outra imagem. Marcelo, pelos vistos, também acredita no valor da propaganda, como tantos outros líderes, através da melhoria da imagem. Percebe-se que Marcelo, apesar de ler muito (segundo a sua imagem...) acredita que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Pela minha parte, tenho algumas palavras a contrapor. Podem valer muito menos, mas aqui ficam.
Se formos por aí, saberão os alemães o que pensam deles os povos do sul?
Para nós, de um modo geral, os povos do centro e norte da Europa são uma espécie de aliens, sem sentido de humor, cinzentões e amargurados, com fraco gosto pela vida (note-se como a sua culinária deixa a desejar) e sem capacidade de relações amistosas, já para não falar nas amorosas.
Por mim, também já várias vezes tive ganas de ir ao Parlamento europeu mandar umas bocas à Alemanha (e, noutros momentos, à Finlândia e a mais alguns também).
Por exemplo, vontade não me faltaria de ir dizer àqueles tipos que ainda a Alemanha não era Alemanha  e ainda aquela gente andava quase de gatas e já os gregos tinham inventado a filosofia. Também me apetecia dizer que ainda a Alemanha não era Alemanha e um pintor do gabarito de Dürer escrevia, numa carta para casa, durante uma sua estada de estudo no norte da península itálica, "aqui sou um senhor, aí um parasita". Também me apetecia dizer-lhes que ainda a Alemanha não era Alemanha e a Espanha e Portugal já andavam a descobrir novos mundos.
Por aí fora.
Apetecia-me dizer-lhes muitas coisas, nomeadamente que, pela minha parte, não devo nada a nenhum alemão, ou finlandês ou qualquer outra nação, dessas onde as pessoas são embirrantes e frias e só pensam em dinheiro.
Mas a verdade é, felizmente, maior do que esta simples caricatura.
Há quase trinta anos, um amigo japonês então com uns tenros e ternos 19 anos, dizia-me: gosto de ter amigos em todo o mundo, porque torna real a necessidade da paz. Não nos importamos quando há guerra num sítio ao qual não temos ligações. Mas tudo se torna real quando temos um amigo num sítio em guerra. Porque então pensamos: não quero que façam mal ao meu amigo.
Tinha razão esse miúdo. Tudo se resume ao que conhecemos. Ao que amamos.
A mim, custa-me que a Alemanha venha mandar bitates a povos que deram Heraclito, Tales de Mileto, Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles, Sófocles, Aristófanes, Plínio, Euclides, Galeno; ou Séneca, Cícero, Vitrúvio, S. Francisco de Assis, Giotto, Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Pico della Mirandola, Marsilio Ficino, Botticelli, Dante, Galileu; ou Vélasquez, Cervantes; ou Pedro Nunes, Luís de Camões, Garcia de Horta... enfim... Estes são só alguns nomes que me ocorrem assim de repente.
Também me custa quando ouço dizer que os povos do centro ou do norte são pouco hospitaleiros, não têm sentido de humor e por aí fora. E custa-me porque de todas as vezes que fui à Alemanha fui maravilhosamente recebida, com generosidade e amizade, gosto da partilha e muito humor.
Nos anos que passei a dar aulas de português a estrangeiros confirmei a existência de muitas ideias feitas em relação a nós, no sul. Também infirmei algumas ideias feitas que eu própria tinha sobre muita gente de países do centro e do norte.
Sobretudo, confirmei que o racismo (ou a xenofobia) nasce do desconhecimento, de uma vontade de rejeição que parte de pré-conceitos, ou seja, de ideias feitas e nunca debatidas com seriedade. Todos nós, todos — e eu diria com raras excepções — caímos nesse tipo de juízos. Temos de nos assegurar quase todos os dias que somos maiores do que o disparate, que somos mais capazes de pensamento do que de precipitações.
Por isso mesmo, acho que não é de imagens que precisamos, mas de diálogo. Só que de um diálogo franco, de peito aberto e sem menorizações. Sem professores de um lado e bons alunos do outro. Aqui, ou somos todos europeus de pleno direito ou então, se a Europa é só para alguns que o digam já. E, nesse caso, eu sugiro já uma coisa: eles no norte que lhe inventem outro nome. Porque a Europa é uma criação grega. Para a estória dessa jovem raptada por um deus metamorfoseado em touro, o nosso peditório já deu. Agora, ou estamos todos do lado da jovem, ou começamos todos a ter cuidado com o touro. Mesmo que desta vez seja só uma dona de casa ignorante e saloia a fingir que é mais do que uma pessoa sem escrúpulos. E a fazer-se passar pela Alemanha, no seu conjunto.
Não poderia terminar estas palavras sem lembrar um grande prussiano: não é por vivermos numa sociedade de ladrões que se torna moral o acto de roubar. A Alemanha, com tantos telhados de vidro, devia atentar na regra do imperativo categórico. Ou é universal ou não é. Não se pode criar a União Europeia depois de ter atentado contra a Europa por duas vezes em menos de 50 anos e esperar um perdão financeiro (e moral) que não se está disposto a conceder a outros; não se pode ficar a dever a países como a Grécia toda a destruição que aí se provocou e depois agir, mesmo que mais de meio século depois, como se todos fossem devedores menos a Alemanha.
A pergunta é: queremos ou não queremos a União Europeia? Queremos ou não queremos a moeda única? Queremos ou não queremos uma união feita de diversidade, sem que essa diversidade implique a sobranceria de uns (no norte) e o sacrifício dos outros (no sul)?
Não acredito que no norte sejam todos frios e embirrantes calculistas, mas já chega de aceitarmos como fatal a imagem de que no sul somos todos incapazes e preguiçosos.
Ou começamos todos a querer conhecer-nos e trabalhar em conjunto, e a rir destas parvoíces, ou então temos de falar francamente. E pegar o touro pelos cornos.


P.S. — A favor do meu argumento pró-diálogo faço uma ressalva: talvez não a Alemanha, como nação, mas a ideia de Alemanha que a Frau Merkel tem na sua cabeça. Mas não nos podemos esquecer que outras personagens igualmente sinistras já puseram alguns países na cabeça. E que o que dessas cabeças saiu não foi nada que devamos ou possamos esquecer.





sábado, 26 de maio de 2012

De que galo falamos quando falamos de cock?



Felizmente, a imagem não é tudo. Ao contrário do que alguns pensam que pensa Cavaco Silva. A essência costuma ser mais importante. Ao contrário do que alguns pensam que pensa Cavaco Silva. Mas ele, há que reconhecer, nunca se importou com miudezas como a essência. Ele sempre ligou ao essencial. E o essencial, como se sabe, é a imagem. A imagem foi sempre mais importante. Uma imagem vale mais que mil palavras. E às vezes a imagem pode ser uma imagem poética. Uma coisa simbólica. Mas isso, claro está, só se encontra ao alcance de poucos.

Por isso mesmo e, ao contrário do que aconselhava Eça de Queiroz, nunca Cavaco Silva quis armar-se em poeta e nunca sequer deu mostras de usar patrioticamente bem o português, revelando desse modo cuidado com a língua e — já agora — com o pensamento. Nada disso. Pelo contrário. Sempre lhe bastou a aparência. Sempre lhe bastaram as coisas simples. Terra-a-terra. Ele não é um intelectual. Não tem peneiras. A prová-lo: nem mesmo a sua situação de professor catedrático de Economia lhe dá ânimo a dar opiniões elaboradas e certeiras nessa área. Não porque não queira ou não possa, como é óbvio. Mas é só porque assim fica mais ao nível do povo. O povo que o elegeu repetidas vezes. O povo que o merece.

E por isso o nosso Presidente da República sempre se preocupou apenas em manter uma imagem elegante. Outros, menos atentos, dirão, decerto com malevolência, tratar-se de uma imagem empertigada. 'Mais vale parecê-lo' podia ser o mote do actual Presidente da República. E tem toda a razão. Ao contrário de uma data de falhados cheios de pergaminhos mas de quem nunca ninguém ouviu falar, ele já foi primeiro-ministro e já vai na segunda etapa como Presidente da República. Afinal de contas, digam o que disserem os invejosos, a estratégia tem dado resultado, há que convir.

E assim ele continua a falar. E sempre com o mesmo descaso pela língua materna. Para que ninguém pense que ele se está a armar.
A corroborá-lo, se necessário for: este é o homem a quem ouvi dizer, na TSF, quando era primeiro-ministro, que só poderia avaliar como tinha corrido uma entrevista que dera à RTP 'quando ver o vídeo'. Um primeiro-ministro que não sabe usar a língua materna e que, portanto, não obedece à primeira parte dessa conhecida máxima queirosiana, é alguém com coragem. Qualquer idiota com pretensões teria dito o correcto 'só sei quando vir o vídeo'. Mas isso soaria a pretencioso. A superioridade intelectual. Ora a ele ninguém lhe há-de imputar esses vícios, essa vaidade, essa estúpida intemperança.

Mas a sua grandeza vai mais além. O descaso pela gramática não é o único aspecto de superioridade que Cavaco Silva desdenha democraticamente. Às vezes, ele é mesmo radical. E desdenha por exemplo a simples tomada de posições quando a responsabilidade do cargo isso pedia. Mas — lá está! — assim se revelam os grandes espíritos. E enquanto qualquer outro mais dado à vaidade poderia usar esse poder (para o qual, dirão os maldosos, ele foi eleito), ele renuncia. Guarda silêncio. Guarda para si mesmo os seus pensamentos mais altos e apurados. Partilhando apenas os que nós, simples mortais, podemos entender.

Porque o problema, como está claro como água, não é ele, mas todos nós. Ou pelo menos, todos aqueles que, entre nós, o difamam. Aqueles que não sabem o seu (nosso) lugar e que se pensam melhores do que são. É por causa da nossa inveja, da nossa mesquinhez que não vemos a sua (dele) grandeza. Os seus saltos de fé, a sua pujança epistemológica. De tão subtil que ela é. Para que nunca se corra o risco de nos humilhar com a sua superiodade natural.

Porque, nas raras vezes em que isso acontece, logo a turba se ergue, com a sua voz implacável para o admoestar, para o isolar na sua imensidão, apelidando-o de idiota e saloio. Como hoje.
Hoje, Cavaco Silva, o elegante Cavaco Silva, o homem que a todo o custo tenta manter a pose, para ficar o melhor possível no boneco e dar de nós a boa imagem que nós, pobres idiotas, não conseguimos dar, foi mais uma vez vilipendiado.
Na Austrália e falando de Portugal, Cavaco Silva deu mostras de numa frase abraçar um país inteiro. Falou do vinho e do galo.
Os idiotas, essa gente menor, apenas viram o que eles próprios saberiam ver e fazer: uma triste caricatura do tuga a querer falar inglês como só os ingleses o podem fazer. E, assim, retirando o r da cortiça e reduzido 'cork' a 'cock', reduziram o intencional galo à não intencional asneirola. Mas não foi nada disso, ó mentes ignaras e perversas.
Dando mostras de não ter medo de ser visto como alguém que fala patrioticamente mal (também) as línguas estrangeiras — aqui seguindo e muito bem o conselho de Eça — Cavaco Silva foi mais à frente. Abriu já as portas ao símbolo nacional, para que este se torne, e de vez, imagem do país até nos antípodas. O Galo de Barcelos teve a sua hora de glória. De uma vez por todas, largou do topo dos fogões de todos os lares portugueses dos anos 60, para o mundo. Pela boca inspirada e certeira do Presidente da República. Numa simples e curta frase, o presidente fez mais por esse símbolo do que as inovações monocromáticas das lojas de design very típicas do Bairro Alto. Pena que os ouvidos dos portugueses estejam tão gastos pela brejeirice. E que todos tenham pensado logo no que não deviam.
Para a frente, homem do mundo! Corrijo o que disse acima: este país não o merece!


Emília Ferreira

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A Crítica da Razão Prática

Ainda estou em estado de maravilhamento.
Cavaco Silva, porventura a melhor imagem que Portugal pode dar de si mesmo, captou toda a essência da expressão "uma imagem vale por mil palavras" e quer que os portugueses, "não só os agentes políticos", mas todos, se dediquem a criar uma melhor imagem do país. Espera ele que essa melhoria imagética desenvolva a economia, gerando o interesse dos outros em nós.
Ou seja, Cavaco Silva espera que o nosso paleio auto-elogioso convença os outros a olhar para nós de outro modo, suprindo assim o vazio que ele próprio ajudou a criar, quando, enquanto primeiro-ministro, acabou com as pescas, com a agricultura e com mais umas insignificâncias.
Agora, diz ele, com o seu incontornável pragmatismo: "Neste dia 25 de Abril, a minha intervenção nesta cerimónia tem um objectivo preciso e uma razão prática: exortar os nossos concidadãos a corrigir a falta de informação ou até a desinformação que susbsiste no estrangeiro sobre o país que somos. Se o fizermos com sucesso, contribuiremos para melhorar as condições de crescimento da nossa economia e da criação de emprego."
Pronto: tardou mas foi. Percebe-se agora, tantos anos depois, porque é que ele dedidiu acabar com os sectores primários da economia, deixando tudo nas mãos dos terciários. Serviços, serviços e mais serviços, este cantinho à beira-mar plantado apresenta-se como um sítio bestial para veranear. A imagem deve ser essa: um país de sol e praias. Ou seja: comunicação. Publicidade. Marketing. Não é preciso mais nada.
Infelizmente, parece estar a falhar. E o "estrangeiro", entidade abstracta que engloba de uma penada todo o "outro" que ignora o que nós somos, deve agora ser seduzido por uma imagem. Uma imagem que diga o que somos. Baseado talvez no que fomos. Porque o que somos agora é que é o busilis. Porque o problema maior, palpita-me, é que nem nós sabemos muito bem hoje o que somos hoje em dia. Ora, se o que fazemos não nos define por completo, o que não fazemos parece, pelo contrário, definir-nos com grande limpeza aos olhos do "estrangeiro".
E perdidos entre as brumas da memória, aqui ficamos sem saber que dizer de nós.
Essa razão prática de que fala Cavaco Silva poderia fazer sentido se não fosse vazia de sentido. Não basta dizer de nós. É preciso ter o que dizer de nós. E num país em que o Estado quer ser menos sendo sempre mais, metendo-se em todas as decisões, travando toda a iniciativa, penalizando quem arrisca, e incentivando o pessoal a pirar-se daqui para fora o quanto antes, a única imagem que temos para dar de nós mesmos é a de um povo que, face ao abismo, deu finalmente o passo em frente.
Mas o problema é evidentemente meu, que sou uma ignorante. Só tenho pena de que Cavaco Silva, no seu pendor pedagógico, não tenha exortado o país através do exemplo. Como daquela vez em que, insultado na Polónia, ele respondeu à letra ao político polaco. Valente! Como é que foi? O que é que ele disse? Ah... que pena, não me lembro. Mas tenho a certeza de que na Polónia nos ficaram com imenso respeito. E vejam lá como isso melhorou a nossa economia e nos trouxe mais emprego!


E.F.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Saber ver

José António Saraiva é daqueles autores que não esgota a minha capacidade de supresa. Bem haja! Desta vez, estas minhas linhas vêm a pretexto da sua mais recente crónica no Sol.

Diz ele:

“À minha frente, no elevador, está um rapaz dos seus 16 ou 17 anos. Pelo modo como coloca os pés no chão, cruza as mãos uma sobre a outra e inclina ligeiramente a cabeça, percebo que é gay.”

Pronto. Ficamos inteirados do tema (um assunto de que recorrentemente o autor se ocupa, vá-se lá saber porquê), mas sobretudo de estar na presença de um homem que leva o estudo das micro-expressões a uma área de confluência com a antropologia e a sociologia. Com efeito, José António Saraiva demonstrará que a sua observação é tão aguda que se enriquece sucessivamente e a vários níveis.

Assim, depois de perorar sobre o local onde se encontra, o Chiado, geografia de eleição para essas pessoas, essa fauna, ele entra no domínio dos números: essas pessoas são uma comunidade em crescimento. Mas não porque a sociedade esteja mais aberta (estará mesmo? A julgar pelo texto dele, nem por isso). Isso é apenas a ponta do iceberg. Porque logo ficamos a saber que essa comunidade cresce por razões de propaganda (a homossexualidade, essa inclinação que já não provoca vergonha – deveria, então, provocá-la ainda? – mas sim orgulho – grandes malucos(as)! –, equiparada a um fenómeno de massas, um ponto de vista também enriquecedor) e por um motivo mais profundo e avassalador: a necessidade de contestação.

Chegam, depois, os argumentos históricos. E aqui se revela, assim, o historiador (deve ser genético, no caso).

Por falar em genética, seguem-se os argumentos que piscam olho a esta disciplina: e assim ele distingue entre os gays que nascem gays e aqueles que se tornam gays. Não posso também deixar de ver aí um argumento erudito: é a referência ao clássico da Simone de Beauvoir, ela própria uma grande maluca, contestatária e com uma sexualidade colorida, quando referia que não se nasce mulher, mas que nos tornamos mulheres. Vêem, vêem, seres maledicentes, como o homem é lido?

A provar o seu gosto pela leitura, vem, em seguida, o argumento de que há jovens que aderem à homossexualidade (definição de homossexualidade como clube) pelo mistério da coisa e pelo fenómeno da moda. E chegámos, numa penada, ao duplo registo do policial e do design de vestuário. Este homem é uma carola.

Depois, passamos, alegremente, para a especulação. Quando o autor se interroga sobre se “há 20 anos ou 30 anos ele [o jovem evidentemente gay que viajava no elevador do edifício do Chiado, à sua frente] teria a mesma atitude, assumiria tão ostensivamente a sua inclinação? E, indo mais longe, se ele [esse rapaz, não o autor, atenção!] tivesse sido jovem nessa altura seria gay?” está no fundo a afirmar o seu direito à ficção.

E mais um assunto arrumado. Será? Não!

Afinal, essa pergunta retórica era apenas para afirmar a dúvida metódica e para chegar à conclusão suprema: a de que a homossexualidade mais não é, no fundo e à superfície, do que “uma atitude de revolta”. Eis-nos, enfim, chegados ao cerne da questão.

E o cerne tem um outro cerne: a questão da tradição. Senão, vejamos.

“Durante séculos, os filhos seguiram submissamente as orientações dos pais em matéria de profissão e casamento. Às vezes contrariados, mas seguiam. Havia famílias de diplomatas, de advogados, de arquitectos, de empresários, de comerciantes, de carpinteiros, de padeiros, de trabalhadores rurais.”

Ah, que saudades… Assim ia o mundo sossegado. Quem não gostava, comia e calava na mesma e não havia cá contestações nem outras inquietações. Um espírito mais atento e desassossegado poderia agora perguntar-se como terá o mundo evoluído se tudo foi sempre, “durante séculos” tão tranquilo e isento de contestação. Mas não vamos por aí. Porque a grande explicação (mais outra) vem a seguir. Um saltinho aos swinging sixties e a coisa está esclarecida. Uma geração chatinha, com a mania, veio levantar cabelo. Em alguns casos, literalmente, como se sabe. À conta dessa gente, uma cambada de drogados e tarados sexuais, o “termo ‘contestatário’ entrou na linguagem comum. As palavras ‘irreverente’, ‘insubmisso’, ‘rebelde’, etc. deixaram de ter uma conotação negativa e passaram a ser vistas como elogios. E não se tratava apenas de um fenómeno europeu. Uns anos antes, do lado de lá do Atlântico, filmes como Rebel Without a Cause (Fúria de Viver), de Nicholas Ray, faziam furor – e James Dean, o protagonista, tornava-se o ícone de uma geração ‘rebelde’ sem uma ‘causa’ bem definida.”

Em seguida, e depois deste intróito, ficamos por fim a saber que o próprio José António Saraiva teve os seus laivos de rebeldia. No melhor pano cai a nódoa, está visto. Faço ideia os dissabores que causou, ele e outros malandros iguais a ele. E de como os seus pais, tal como outros “funcionários exemplares”, devem ter sofrido “horrores” com ele.

“Pertenci a essa geração em que muitos jovens da minha idade estavam em guerra aberta com a família. […]. Houve conflitos tremendos entre pais e filhos. Os pais, funcionários exemplares, presidentes de Câmara, directores-gerais, militares de elevada patente, etc., sofriam horrores com a irreverência dos filhos que andavam em manifestações, entravam em conflito com a Polícia e às vezes eram presos.”

Não nos iremos deter sobre essa visão idílica dos funcionários exemplares do antigo regime. Isso daria outra crónica maravilhada. Por agora interessa-nos a contestação. E então depois de ficarmos a saber que não fora o tio, José Hermano Saraiva, esse grande ministro da educação e deputado da Assembleia Nacional, a entrar em cena e ele teria tido sabe-se lá que chatices, ficamos também cientes de que outros políticos, nossos contemporâneos, tiveram também as suas crises contestatárias. E que, de uma forma ou de outra, toda aquela geração foi marcada por um semelhante espírito de inquietação. Ora o problema actual é que, mortas as ilusões revolucionárias, há que encontrar outras guerras. E agora, está bem de ver, jovem que queira moer o juízo aos pais aposta em tornar-se gay.

Ou seja: jovem, queres dar cabo da carola dos velhos? Esquece as ideologias, as drogas, as calças à boca-de-sino, as melenas desgrenhadas e livres onde o piolhame cresce livre de entraves. Torna-te gay. Opta por isso. Deixa-te de cenas fora de moda. O que está a dar é um tipo ir na onda. E a onda é a homossexualidade.

Não podemos negar o poder de síntese de um tal raciocínio. A complexidade de vidas assim resumida num modismo. Numa conveniência. Formidável! Que lucidez! Que poder de análise!

Estando a chegar ao final do artigo, em estado de verdadeiro maravilhamento, pensava eu que já não havia mais pérolas. Como espírito simples que sou, enganava-me.

E a conclusão chegava desse modo triunfal e pujante, misturando nela o livre-arbítrio (a “opção gay”), o antibiótico (a rejeição da vida, bio, ao recusar “a relação homem-mulher, ou seja, o acto que assegura a reprodução da espécie”), a filosofia – misturando Nietzsche e Kant, como só um erudito poderia fazer, ao citar o “niilismo assumido” e a “ausência de utilidade” (Kant diria que, assim sendo, se se trata de um prazer desinteressado, é bom e é belo, mas acho que não devia ser a esta conclusão que o autor em questão queria chegar) – e abordando mesmo de forma sábia a complexa teoria da cor: “o uso de roupas pretas, a fuga da cor, vão no mesmo sentido em direcção ao nada”.

Esta afirmação conquistou-me, se mais alguma coisa faltava para o fazer. Eu, que sempre fui contestatária, tenho agora a prova extra de uma bichanice não assumida mas latente: o gosto de me vestir de preto. Mas não faz mal. Estou na moda. Posso ser uma vítima da propaganda, mas não estou só. Está visto que é uma coisa de clã. A mim juntam-se, em bichanice total, todos os góticos, os fadistas, os padres, e esse bravo pessoal das tunas e demais fauna académica. Lá se vai a tranquilidade com que Ivone Silva se gabava de que “com um simples vestido preto, eu nunca me comprometo”.

Meu deus, que texto!

Com intelectuais deste gabarito, como é que o país está neste estado?



Emília Ferreira

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Um cheirinho a fumo

Não deve haver mais nada para comentar. Pelo menos é o que se deduz da discussão sobre a maçonaria. 
Não há canal que não fale no assunto. Não há noticiário que não o refira e debata.
À parte o facto de se tratar de um assunto fascinante, com muitos mistérios envolvidos, com muita história e pergaminhos, não sei praticamente nada da maçonaria. Estou em crer que a maior parte dos portugueses também não. E, no entanto, já há uma onda de encantamento pela ideia da perseguição.
O cheiro bafiento que propõe que cada maçon, se for político, tenha de declarar a sua ligação à associação secreta, assusta-me porque traz consigo um outro odor: a fumo.
Vem dessa exigência um bafo a fogueiras que me desagrada profundamente.
Gosto muito mais do princípio maçon de cada um poder dizer de si que o é, mas não poder dizê-lo sobre mais ninguém. Este princípio — que é o contrário da denúncia — comporta respeito pela privacidade e pela liberdade do outro.
Gostaria de pensar que o apoio que muitos cidadãos parecem dar à ideia da auto-revelação forçada teria a ver com o gosto pelos mistérios revelados. Mas temo que esteja muito longe disso. Temo, na verdade, que seja apenas mais uma caça às bruxas.
Não me surpreende que haja elementos da maçonaria que sejam corruptos. Há corruptos também fora da maçonaria. Há corruptos por todo o lado, em todos os quadrantes políticos e em todos os credos e em todas as nacionalidades e cores de pele. Há-os, realmente, de todos os tipos e géneros. Faz parte da natureza humana.
Não é por acaso que todas as sociedades se organizaram fazendo leis. Suspeito que desde os primórdios do tempo a nossa espécie sempre fez das suas. Para se ser parvo não é preciso usar avental. Para se ser esperto também não.
Talvez fosse boa ideia pensar é se esta vontade de fogueirinhas não revela em nós, em geral, com ou sem aventais, um certo gostinho maldoso de perseguição.
E a isso, assim, por princípio, não acho mesmo graça nenhuma.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O anunciado fim de algumas relações

A minha geração não usa com facilidade o verbo amar. Lembro-me até de um texto de Miguel Esteves Cardoso, há cerca de vinte anos, sobre as possíveis razões para a sua escassa utilização. Miguel Esteves Cardoso dizia que era, obviamente, um embaraço fonético. É possível. Seja por que razão for, por pudor ou  falta de coragem, na minha geração, mesmo que se ame muito, a coisa é calada. Pode ser reconduzida para as cartas, para os ensaios literários, ou os ensaios poéticos nos desabafos entre amigos, mas não é confessada de ânimo leve.
Talvez por isso, nós usamos com largueza de espectro o verbo gostar. Naturalmente, gostar de. Nós gostamos dos pais, dos filhos, dos amigos. E até dos amantes. Daqueles a quem amamos de modo amplo — físico e anímico. Mas... discretamente dizemos "gosto de ti".
As novas gerações, mais ligeiras no verbo, passaram a amar. Mesmo que, em alguns casos, amem comer pizza ou amem sair à noite (nós, apesar da nossa contenção amorosa, somos nestes casos mais dados ao exagero da adoração: adoramos um bom bife ou adoramos aquele lugar).
O amor, mais generalizado, fez cair em desuso o verbo gostar. E à conta disso, à conta da escassa familiaridade com esse vocábulo, as novas gerações estão a deixar progressivamente de lhe reconhecer as ligações amorosas. No caso, com a preposição "de".
É que gostar é sempre com "de". Gostamos de peixe. Gostamos de dias de sol ou gostamos de dias de chuva. Eu gosto especialmente do Inverno. Fulano faz aquilo DE que gosta. Etc.
Mas, nos últimos anos, a preposição de tem sido muito ignorada nesta relação. O verbo mantém-se, apesar de menorizado, mas a preposição, coitada, foi votada ao ostracismo. É um caso triste. E galopante.
Ainda agora acabei de ouvir um anúncio do MEO, com um coro infantil que canta (na sua graça de enfiar a murro a letra na música, como todos os tresloucados anúncios a que os rapazes Gato Fedorento nos habituaram) "os programas e os filmes que gostas"...
Eu fiquei à espera. Que gostas... de quê? De ver? De gravar? De ver muitas vezes? De ignorar? Nada. O verbo ficou sozinho, pairando num limbo, uma espécie de purgatório das relações com fim anunciado.

E eu fiquei a pensar como eu gostava de ignorar estas coisas e não ficar a remoer estas coisas.
Gostar de ignorar é uma coisa que eu gostava mesmo muito de conseguir nestes casos. Mas não consigo. Fico presa àquilo. Não largo.
Eu sei que aqueles anúncios são brincadeiras. Mas tinham mesmo de passar um mau exemplo de português? E logo aos putos? Era escusado. Era tão escusado...

Era quase tão escusado como outro escusado anúncio, desta vez da Zon, que agora até já tem cartazes na rua (não vá alguém ter deixado aquela treta passar despercebida), com aquele trocadilho brejeiro tão giro, tão moderno, tão actual, tão atento à realidade de as mulheres serem grandes consumidoras... e pagadoras... que aponta uma Boa Zon...
(Tão giro!!! Uau! Quem terá sido a cabeça privilegiada que pensou com tanta qualidade?)

É assim, caros amigos, que as relações começam a azedar. E acabam. Temo que a relação do gostar com o de tenha mesmo os dias contados. Assim como a minha relação com a Zon. Para que aquela se salve, não sei que mais sugerir, para além do velho cuidado com a língua.

Mas, para que esta se salve, até tenho uma sugestão. Sugiro que façam mais uma versão. Uma coisa com pronúncia do Porto, com um gajo bom tipo o da hora Coca Cola Light, e em que uma mulher mais velha (já agora façamos uma graçola até ao fim) olhe para ele com ar de quem aprecia um bombom e diga: "é um bom zon"...

Assim, quem sabe, talvez eu me reconcilei com a Zon. Até talvez passe a gostar ...'ela.

Sábado, 20 de Junho, depois das 16h00

Em frente ao Museu de Arte Popular. 
Boas ideias. Interessante debate. 
E agora?

MAP, 1

MAP, 1

MAP, 2

MAP, 2

MAP, 3

MAP, 3

Nova acção a favor do Museu de Arte Popular

Sábado, 20 de Junho, em frente ao museu, pelas 16h00. 
Não faltem!


[sobre as variantes do Hipericão ver 
http://cantinhodasaromaticas.blogspot.com/2008/06/hiperico-do-gers.html]

Um lembrete positivo

Um Michael Caine personificando um magnífico Alfred, pergunta a Bruce Wayne, sujo das chamas que deitaram abaixo a sua mansão: “Why do we fall, sir? So we can learn to pick ourselves up.”

Uma fala sábia de uma personagem cujo actor tem, na vida real, um lema magnífico: “Use the difficulty.”

Um lembrete maravilhoso nos dias difíceis de atravessar. Para quem quiser usar.

À laia de introdução

Começo hoje a publicar este breve glossário. Continuará por ordem alfabética, como convém a um bicho do género. Quaisquer acrescentos a letras entrarão também em cena pela mesma ordem.

Glossário de generalizações ou alguns parágrafos-guia para bem entender este país

A

Acentos — Fazem parte do corpo das palavras. Têm uma função. Não são elementos decorativos. Normalmente esquecidos pelos mesmos inventivos que depois põem bolas em cima dos ii.

Ambição — Juntamente com o optimismo, uma das forças que faz andar a humanidade. É o sentimento que nos faz querer mais, ultrapassar os obstáculos, desejar, sonhar. Para não nos lançar na selvajaria, deve ser temperada com escrúpulos. Em Portugal, é sempre vista como uma malfeitoria. Já assim era entendida no latim, que lançou esta maldição sobre o desejo. O que faz uma definição nefanda...

Antigamente — Advérbio de modo. Do modo correcto. Antigamente é que era bom. Tempo indefinido mas claramente definido no passado. O antigamente é sempre garantido. Os gregos chamavam-lhe a Idade do Ouro. Em Portugal é simplesmente antigamente. Vagamente depois do tempo em que os animais falavam e claramente antes de nos tornarmos adultos. Antigamente tudo sabia melhor. As pessoas eram mais simpáticas. Lia-se mais. Havia menos insegurança. E mais liberdade. Quando eu parar de rir, vou voltar à lista.

Ar — Aquilo que respiramos. Mas também aparência. Verosimilhança. Apesar de ninguém viver dele (com a excepção dos fazedores de leques e da indústria do ar condicionado), o ar condiciona a nossa vida. Faca de dois gumes. Porque ter ou dar(-se) ares (de alguma coisa) é algo a desejar e a temer. Exemplos: Fulano tem ar de parvo. Sicrano tem ar de boa pessoa. Fulana dá-se ares de estrela de cinema. Aquele dá ares de rico. Não precisamos de ir mais longe. O ar é tudo. Para quem não é, ar basta.

Artista — Jeitoso, habilidoso. Trafulha. Quando morto, é bestial; quando vivo, não passa, com sorte, de grande besta. Inapto e inerte. Equivalente a intelectual, mas sem a cabeça. Os antigos é que eram bons. Faziam um trabalho escorreito, bem feito, com claro saber do ofício. E que se percebia, que tinha mensagem. Os de agora não sabem fazer nada, só fazem coisas sem nexo para chatear o público. Nós. Porque é que aquilo é arte? Grandes artistas! Aquilo também eu fazia...

Água benta — Material que, a par da presunção, é tomado de acordo com a vontade de cada um. Em Portugal, mesmo com crise de vocações e com crise de clientela nas igrejas, presunção e água benta têm futuro garantido.

Autismo — Desordem do foro neurológico; compromete a capacidade de comunicação. Não compromete, porém, a inteligência (lembram-se de Rainman, o filme?). Aquilo de que os políticos se acusam mutuamente (e desadequadamente) de padecer. Porém, neste segundo caso, como se percebe pela usual, estrutural, epidémica e manifesta falta de inteligência, não se trata de autismo, mas de bolha.

Automobilista — Aquele que conduz um automóvel. Aquele que dirige. Entre nós, dada a nossa propensão a deixar-nos conduzir, é confundido com líder e, por vezes, com ditador. Daí que automobilista seja entendido e comummente aceite como aquele que impõe a sua vontade. Vem daí a sua legitimidade em andar na estrada como se estivesse sozinho em casa.

Automóvel — Literalmente, aquele que autonomamente se move. Não confundir com objecto de arremesso ou toiro. O primeiro porque, por definição, o objecto arremessado não se move sozinho: é movido; o segundo porque, apesar de o toiro também poder, em essência, ser definido como um auto-móvel, visto mover-se por si mesmo, não cumpre a função de veículo motorizado. Embora haja muita gente a tourear nas estradas, resolvendo no asfalto aspectos menos interessantes da sua índole, nem o toiro é automóvel nem o automóvel devia ser utilizado para andar a fazer faenas aos outros. Ainda assim, é o que se verifica as mais das vezes. Talvez por isso, e dada a grande taxa de mortalidade nas nossas estradas, persista, nas vozes tremidas de certos fadistas, o sucesso do célebre fado que lamenta: “Foi um toiro que o matou”.

Autonomia —  Do grego auto + nomos, a palavra significa, na origem, território ou lei própria. Exercício de reflectir e agir por si mesmo. Usada sobretudo no domínio da ciência política ou da filosofia, em Portugal a autonomia tem um uso comum muito mais prosaico, reduzindo-se, nos últimos anos, à tecnologia de ponta. Deixando de ser a capacidade de independência judicativa, territorial ou económica passou a ser o tempo que o telemóvel aguenta em conversas… ou parado. Eventualmente, a autonomia pode também ser aplicada à bateria dos computadores portáteis ou ao depósito do automóvel. No aspecto automobilístico, convém lembrar a existência, em Portugal, de um tipo particular de autonomia. A que se passa em relação ao código da estrada. Cada cidadão português portador da licença de condução tem o seu próprio sentido de autonomia, que se confunde com o conceito de privacidade. Tirando isso, nada mais interessa.

Autoridade — Qualidade de autor; aquele que sabe do seu valor. Que tem saber e experiência própria. Exemplo: fulana é uma autoridade na matéria. Antónimo de autoritário. Noutro sentido, autoridade é também aquele que age para a manutenção da ordem. Polícia. Em Portugal, dado o sucesso da verosimilhança, no primeiro sentido do termo também serve aquele que dá ares de saber alguma coisa. Suspeita-se por isso que os lugares de topo, mais próximos dos ventos impantes, se dêem mais ares que os demais. Autoridade máxima. Não confundir com cabeças de vento. Sinónimo de autoritário.

Autoritário — Aquele que se firma numa autoridade excessivamente forte; ditador. Em Portugal, de um modo mais abrangente, todo aquele que tem uma opinião diferente da nossa e que a defende com veemência (ainda que não nos obrigue a pensar como ele). Chato.

Autoritarismo — Modo de impor aos outros a nossa vontade mesmo que se encontre isenta de razão. Associado ao poder ilegítimo. Os políticos profissionais são com frequência acusados de padecer desse defeito. Porém, em Portugal, o deficit democrático faz com que todos vejamos com maus olhos o facto de haver opiniões diversas das nossas. Num extraordinário passe de mágica, o autoritarismo dos outros constitui uma excelente desculpa para a nossa cobardia. Exemplo: eu devia dizer-lhe o que penso, mas o gajo é um autoritário e não me deixa. Isenção da capacidade de usar a liberdade. Como é que era a máxima? O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.

 

B

Bolha — Substantivo. Pequena zona de ar rodeada de matéria por todos os lados. A bolha, também conhecida por veneta, referencia exemplarmente a capacidade de decisão dos portugueses. Modo pessoal e intransmissível de ser. Funciona por impulso e não por razão. Apetite súbito. Exemplo: ele fez aquilo porque lhe deu na bolha. O contrário de ser criterioso.

 

C

Carta — Documento escrito, geralmente de natureza íntima, pessoal e intransmissível. O seu uso mais comum, em tempos de email e de SMS, e com a excepção das cartas de marear e das de jogar, reduz-se actualmente à Carta de Condução. Talvez resida aí a explicação para os portugueses terem uma tão pessoal noção do código da estrada e das normas de civilidade ao volante. Quem lhes passou a carta de condução não lhes explicou que o que aí se assume é um princípio de boa vizinhança. Uma espécie de não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. Ou mesmo, como diria o Bernard Shaw, não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti: os gostos deles podem não ser os mesmos. Adiante. Não lhes explicaram, portanto, coisas essenciais. Ou seja, passaram-lhes a carta mas não lhes passaram cartão.

Coerência — Qualidade daquele(a) que não cai em contradição. Diferente de teimosia. Coerente é o(a) que procura a lógica do pensamento e age em conformidade. Em Portugal, coerência é pensar sempre o mesmo, do princípio ao fim da vida, mesmo que a experiência nos ensine que estamos a pensar mal. Antónimo de traidor. Sinónimo de burro.

Competência — Definição geral: correcto cumprimento do exercício das funções atribuídas. Exercício de rigor. Profissionalismo. Definição portuguesa: atitude de desafio adoptada por alguns indivíduos, com sede de protagonismo. Antónimo de competências. Os que são competentes no que fazem raramente invocam as suas competências. Os que têm sempre as competências na boca são geralmente os que matam qualquer hipótese de competência. Exemplo: Não posso fazer isso (mesmo que o saiba e possa fazer) porque não é das minhas competências.

Contemporâneo — Aquilo que é do nosso tempo. No plural, passam na RTP1 e são uma das formas mais estupendas de limpeza hepática. Em hipericão, do melhor que tenho visto. Chapelada.

Coragem — Literalmente, o que move o coração. Valentia. Ousadia. Nobreza de carácter. É corajoso(a) aquele(a) que confronta o medo, o perigo, as ameaças. Em Portugal, a coragem tem duas grandes manifestações nacionais: a tourada (e as largadas de touros) e a condução a 250km/hora.

Cultura — Nome genérico dado a todas as práticas humanas, desde o cultivo do solo, às crenças, valores, regras, usos, comportamentos, acções, criações. Íman turístico e valor económico já estudado como gerador de riqueza, seja pela gastronomia, música, arquitectura, literatura, artes plásticas, teatro, qualidade do azeite, do vinho, das praias ou limpeza das ruas. Os países que acarinham a cultura ganham com ela. Os que a desdenham não só não a querem comprar como a perdem. Em Portugal, para quem tiver dúvidas quanto ao grupo em que nos encontramos, basta respirar. Domina o cheiro a naftalina e a formol. Quando não a pólvora: sempre que ouço falar de cultura, puxo da pistola.

Criatividade — Capacidade de criar, inventar ou inovar em qualquer área do saber humano. As áreas mais citadas e valorizadas internacionalmente são as artísticas, científicas e desportivas. Em Portugal, este conceito abrange sobretudo o domínio do quotidiano e exerce-se na capacidade resiliente de dizer não a todas as formas de originalidade. As demais áreas, valorizadas internacionalmente, são entre nós consideradas sobrevalorizadas, sendo por isso geralmente enquadradas no conceito de exibicionismo. Embora alguns estrangeiros ignorantes (e alguns portugueses com a mania) tomem a nossa criatividade por imitação (veja-se a apresentação das actrizes nos Globos de Ouro, completamente diferente da fórmula usada este ano na cerimónia de entrega dos Óscares), a nossa criatividade é que a boa. Sai mais barata e comporta muito menos riscos.

Crise — Palavra ambivalente. O I Ching afirma que é nos momentos de crise que se vêem os grandes homens. A culpa nacional prefere cultivar a máxima que nos momentos de crise ainda se vê menos (sejam grandes homens ou o que quer que seja) do que nos de prosperidade. Desculpa perfeita para não fazer nada. Que grande alívio, esta crise!

Critério — Do grego kriterion, que significa norma de julgar, capacidade de distinguir o verdadeiro do falso. Dado usado para a avaliação ou escolha. Norma de confronto, comparação. Em Portugal, é geralmente confundido com perda de tempo.

Criterioso — Aquele tem critérios, normas. Para os que têm conhecimento do étimo, o termo é tomado como sinónimo de honesto. Em Portugal é, contudo, geralmente confundido com maniento ou obcecado, sendo por isso usado como insulto. Chato de merda.

Crítica — Capacidade de julgar, de avaliar. Exercício do exame racional isento de preconceitos. Pressupõe, por isso, capacidade de formação, informação e análise que não apenas é capaz de julgar o valor do que é avaliado como, também, de produzir um raciocínio dotado de algum valor. Estando o valor bastante desvalorizado entre nós a crítica vem fenecendo, bastando para nós o muito mais intuitivo e sadio uso da maledicência.

Culpa — Conceito religioso relacionado com a queda, a falta original. Diferente de responsabilidade, conceito laico que tem apenas como pretensão a indicação do autor (responsável) de uma acção. Em Portugal, talvez por vivermos num Estado tendencialmente laico há menos de 100 anos, a responsabilidade tem escasso uso; o português prefere a culpa, sobretudo para se livrar dela. Talvez por a usar em termos esmagadores, absolutos: eu não tenho a culpa. Mal amada, a culpa permanece como no velho adágio popular em que se refere que morreu solteira.

Glossário de generalizações, parte II

D

Desenrasca — Substantivo masculino. Tradicionalmente considerado a grande valia do português. Estudos recentes sustentam, porém, que o reiterado falhanço no uso da cabeça provoca atrofia a vários níveis.

Desviar-se — Verbo, de raízes dúbias e ancestrais, claramente caído em desuso, e que anuncia a necessidade de o sujeito se afastar de um obstáculo. Em Portugal, raramente  é usado na primeira pessoa (do singular ou do plural), ficando sempre para o(s) outro(s) a observação desse procedimento claramente incomodativo. Servindo à perfeição a máxima filosófica do quem está, está; quem vai, vai, o uso do verbo na sua forma reflexa reflecte assim o nosso sossegado descaso perante a partilha do espaço comum. Exemplo do uso do verbo: Eles que se desviem.

Deus — Conceito abrangente de que nos socorremos quando a vida nos corre mal, quando corre bem e quando temos dúvidas. E quando não queremos ter a culpa das nossas acções. Já muita coisa se escreveu à cerca de deus. Provavelmente só falta falar num atributo específico da sua natureza: tem as costas largas.

Difamação — Fazer o mal sem olhar a qual. Exercício perfeito para quem quer mandar umas bocas só porque sim. Não exige confirmação, confrontação, nem reflexão. Pré-congelado do juízo crítico. Também sinónimo de inércia do pensamento. Para quê pensar nas consequências, se pode divertir-se tanto no processo? Diga agora, pense depois. Ou nunca. Ideal para ser usado em países com baixa literacia e nula capacidade reflexiva. Em épocas mais dramáticas já levou muita gente à fogueira. Agora liberta menos dióxido de carbono mas continua a ser igualmente letal.

Doutor — Adjectivo de uso epidémico em Portugal. Também usado como substituto de título nobiliárquico ou como primeiro nome: “O meu nome é Doutor X…”. Aquele cujo maior objectivo na vida é tirar um curso (qualquer curso), para poder apresentar-se como tal e para poder ter as letras Dr. no livro de cheques e ser tratado com maior deferência nos lugares públicos, em especial em funções que em nada se relacionam com o título que ostenta, como quando vai à mercearia, por exemplo.

 

E

Escrúpulo — Exercício da dúvida; consciência, hesitação ou inquietação. Aparece sobretudo num espírito crítico e armado de ética. Excelente guia para a ambição, torna-a numa postura comedida, em que os fins não justificam os meios. Em Portugal, é visto quase exclusivamente como um embaraço ao sucesso. Escrupuloso é, portanto, sinónimo de parvo. De alguém que deixa passar as oportunidades. Fatalidade. Mal do destino. Exemplo: coitado, é boa pessoa.

Ética — Em geral: observação dos princípios que orientam o comportamento humano no respeito pelos valores e pelas normas sociais. Princípios gerais de boa conduta. Assunção geral de que não vale mesmo tudo menos tirar olhos. De que os outros devem ser considerados fins em si e não meios para atingir um fim. Em Portugal: conceito elástico que se aplica de acordo com as conveniências. Se, dado um determinado objectivo, for preciso dobrá-lo e até parti-lo, não há qualquer inconveniente. Caso contrário, a ética não passa de um empecilho. Ou de uma mania.

 

F

Falta de educação — Modo simplista português de usar conceitos mais complexos e rigorosos como a frontalidade e, por vezes, também a independência. A confusão tão vulgar entre nós resulta de simples desatenção, já que a má educação se manifesta claramente na maneira abrutalhada de falar e de se dirigir aos demais, bem como no uso ostensivo e invasivo do silêncio. Ausência absoluta de reconhecimento de qualquer norma comum de civilidade. Em Portugal, a má educação grassa, por ser considerada sinónimo de qualidade. O seu uso dá ares de se ser mais fino, mais importante e melhor profissional. Se é bruto é porque é bom. Sinal exterior de sucesso e estatuto.

Fobia — Ódio, rejeição, obsessão. Diferente de mania. Exemplo: um homofóbico não é um tipo com a mania dos homossexuais. Pelo contrário. Vejam lá se percebem isso de vez. Ou então percebam-se de vez.

Frontalidade — Qualidade do que é frontal; que diz as coisas pela frente. Em Portugal, dada a falta de prática da sinceridade, confunde-se frontalidade com mera falta de educação. Mas não se iludam; frontalidade não é isso. É mesmo dizer as coisas de um modo directo.

Futebol — Visto em todo o mundo como desporto, em Portugal é, simultaneamente, um tema de debate e um problema nacional. Karma português. Início de quase todas as conversas. Ou para quebrar o gelo, ou porque não há mais assunto. Ou para evitar outros assuntos. Fim de quase todas as conversas.

G

Gosto — Pessoal mas transmissível. Aquilo que mais se discute. Mas que menos se gosta de discutir. Verbo maltratado e desrespeitado. Os gostos podem variar, mas quando se gosta é sempre com “de”. Gosta-se de alguém ou de alguma coisa. E mesmo quando não se gosta é com de. Gosto de gatos. Não gosto de gente estúpida. Também não gosto de gente que usa o verbo gostar sem de. Questões de gosto. E de gramática.

Grama — Apesar de terminar em a, não é um substantivo feminino. Unidade de medida de massa (vulgo, peso), o grama é masculino. A grama só existe no Brasil, onde serve para repousar ou passear. Cá, dá pelo nome de relva. Quanto ao fiambre, queijo, presunto ou outros petiscos, pedem-se aos duzentos, trezentos... gramas. Vá lá, nem tudo é unisexo.

Gramática — regras de uma língua que esclarecem o seu bom uso e possibilitam a comunicação. Em Portugal, a gramática é considerada uma maçada, e dado o seu decorrente desuso os problemas de comunicação têm aumentado exponencialmente. (Ex-po-nen-cial-men-te: para alguns portadores de recentes graus de licenciatura, quer dizer que que são bués.)

Enquanto preparo algumas notas...

... vou partilhando convosco alguns textos que escrevi já há uns anos, sobre o mau uso do português. Nunca os consegui publicar porque me diziam sempre que eram "giros" mas que não interessavam aos leitores, por serem muito específicos. Deve ser o mesmo problema que faz com que continuemos a falar mal a língua que bebemos com o leite materno. 
Esta mania de que falar mal português não é um problema é uma das minhas maiores figadeiras. Por isso sigo com apreço o trabalho do José Mário Costa e da sua equipa do Ciberdúvidas e do programa Cuidado com a língua. Daqui o meu apreço e o meu agradecimento pelo excelente serviço que estão a prestar. Assim lhes prestem a devida atenção.

Os jogos do logo

 No princípio era o Verbo. Vem escrito na Bíblia. Não que no princípio tudo se resumisse à gramática, é claro, mas que no princípio era o ser. Não cabe aqui discorrer sobre essas importantes questões teológicas, mas apenas lembrar a vontade de revelar. A linguagem, ao nomear o mundo, não se limita a mostrá-lo. De facto, cria-o. Como todos sabemos, semelhante tarefa nem sempre se demonstra fácil. O logos que os gregos inventaram tinha, assim, essa nobre missão: em si reunia a palavra, a razão, e o próprio mundo — expressão de uma razão divina que o organizara. Os cristãos, na senda da tradição bíblica, chamaram ao logos o verbo de que já falámos. O conceito, guardião de múltiplos tesouros, acrescia-se de dificuldades interpretativas jamais completamente aclaradas com o correr dos séculos.

A língua portuguesa, herdeira de muitas outras, embora principalmente do latim, tem também as suas costelas gregas e delas aprovou o uso teológico e filosófico do logos, assim mesmo tomado simples ou em compostos como a biologia, filologia, meteorologia, e outros. Não satisfeitos, porém, com esse uso comum a outras línguas, os portugueses resolveram dar ao logos um destino singular.

Assim, surgiu o logo. Longe, contudo, de por perda de plural, se ter simplificado, o logo arvorou-se de importâncias, determinado a não desmerecer a memória complexa de tão gloriosa raiz. E eis que surge toda uma riqueza que não deixa de confundir os estrangeiros. Se nunca pensou nisso, e a pintura do caso lhe parece exagerada, tente então explicar o que significa logo. Pois é; pode ser mais tarde, /imediatamente/assim que, e até portanto/por conseguinte.

Não lhe parece? Então vejamos.

Quando começa a Primavera aparecem logo muitas pessoas com alergias. e algumas delas até ficam irritáveis. O meu vizinho B. é uma delas. Ainda hoje, ao chegar a casa, o encontrei no átrio. Passei por ele e cumprimentei-o mas ele não me respondeu. Logo, ou estava mal disposto ou distraído, porque normalmente é muito afável.

Logo que cheguei a casa o telefone tocou. Era M. a convidar-me para ir ver uma peça no dia seguinte. Como gosto muito de teatro disse-lhe logo que sim.

No dia seguinte, de manhã, telefonei-lhe para confirmar. Perguntei-lhe:

— Então, já tens os bilhetes?

— Ainda não. — respondeu. — Só logo é que os vou comprar. Vou logo a seguir ao almoço. Telefono-te logo a confirmar. Até logo.

Então? Agora já lhe parece que não houve muito exagero nas pinceladas acima ensaiadas? Mas, sim, podemos concordar que na maioria dos casos referidos, o uso, iluminado pelo contexto, até é evidente. O único que não é tão claro é o do momento em que M. afirma: "Telefono-te logo a confirmar." Porque, aqui, este logo é quando? Logo a seguir à compra? Logo mais — mais para o fim da tarde? Logo se verá. Mas aqui temos um logo novo: o do momento exacto. Ou da hora agá. Em que ficamos, então? É claro: nós podemos sempre esclarecer a situação, mas a graça da história está precisamente na não evidência.

E não são apenas os estrangeiros à língua que a notam. Também nós temos necessidade de aclarar, logo de início, algumas frases, dizendo desde logo: telefono-te mais logo; enfim, ligo-te logo que possa…

No até logo não surgem dúvidas de ser até umas horas mais tarde; qualquer encontro para daí a menos que horas fica cingido a um magro até já.

Postura mais alargada tem o Brasil. Também, não é caso para menos. Em país de tão larga geografia, porque havia a expressão de ficar atrofiada? Aí, quando um brasileiro diz até logo, não significa que seja até daí a umas horas, mas até mais ver, ou até um dia, até à vista, reencontro de data incerta mas seguramente distante no tempo.

Enfim, como podemos observar, o logos inicial trouxe-nos muita riqueza. E se, mesmo singularizado, ele se pluralizou de significados, talvez tenha sido apenas para nos revelar mais facetas de si e de nós mesmos. Assim se espera, pelo menos. Enfim: logo veremos.

E.F.

 

INFERNOS

Quando ocorreu o bíblico episódio da torre de Babel, decerto ninguém poderia supor que as consequências viriam a ser tão estranhas e complicadas. Só para recordar a história, quando os homens tentaram construir uma torre que chegasse ao céu, Deus, enfurecido, resolveu destruir-lhes a obra e gerar a confusão, fazendo com que passassem todos a falar línguas diferentes.

O que não vem na Bíblia, depois, diz respeito à criação dessas línguas e à lei das compensações. Assim, aos chineses calhou uma escrita complexa, mas uma gramática genialmente simples. Quanto a nós, a história é diferente. O português tem uma gramática bem mais complicada, mas também é certo que alguma coisa teria de compensar a simplicidade da escrita alfabética. Para contrabalançar, então, somos atacados pelos tempos verbais. Felizmente, dizêmo-los de ouvido porque os conhecemos desde o berço, sendo assim poupados aos dramas de uma aprendizagem em idade adulta.

Por isso, fazemos essa ginástica verbal com toda a desenvoltura. Articulando múltiplos passados, presentes e futuros. Eu fui, eu ia, eu tinha ido, acabei de ir, se eu tivesse ido… etc.; eu faço, eu estou a fazer (ou estou fazendo), talvez faça, etc.; e direi, vou dizer, quando disser, hei-de dizer… e por aí fora.

Suficiente para enlouquecer, com justa causa, qualquer chinês, habituado a pensar apenas no infinitivo dos verbos, indicando o tempo com um antigamente, hoje ou amanhã, ou ontem, ou um dia. Contudo, também é verdade que as sementes de loucura se podem instalar igualmente entre nós, pondo a nu as tais chatices decorrentes do episódio citado no início.

Tomemos a construção "haver de". Aparentemente, não tem nada de mais. Todos nós sabemos que, quando dizemos "eu hei-de ir ao Japão, um dia" não estamos a expressar senão uma intenção. Havemos de o fazer. Um dia. Quando? Desconhecemos. Mas, pelo menos, a intenção existe. O uso desta construção põe, porém, alguns problemas. Não na intenção, mas na conjugação. É um verbinho traiçoeiro o "haver", irregular já de si e ainda por cima de preposição às costas, tipo estudante de mochila. E nós lá vamos embatendo nele, como na estudantada em autocarros apinhados.

E afinal é assim: eu hei-de, tu hás-de, ele há-de, nós havemos de (vá-se lá saber porque não há hífen neste caso), eles hão-de. É assim e nada tem a ver com coisas arrepiantes como o "eles hadem vir…", ou o "depois hades contar-me todas as novidades…". É que o que se conjuga, em qualquer língua, são os verbos e nunca as preposições. Neste caso, o verbo é "haver". O "de" é mera preposição. Assim, hadem e hades são realidades obtusas. E, além do mais, dadas a confusões. Se hadem é coisa que não existe em português (diz-se "hão-de" e nunca "hadem"), quando se chega ao "hades", já é diferente. Existir, existe. Com o mesmo som, mas com maiúscula. O Hades. Só que nada tem de gramatical. É apenas o reino dos mortos, o nome do inferno, na mitologia grega. E também o nome do deus que reina nesse lugar de morte.

É pois largamente preferível dizermos a um amigo "depois, hás-de contar-me todas as novidades", do que pronunciar o tétrico e infernal "hades contar-me…". Por um lado, porque "hás-de" é a maneira correcta de falar. E por outro, porque apesar de o Hades estar cheio de boas intenções, o amigo pode não achar graça.

 

E.F.

Para dar cabo ou conta de nós

Por entre as glórias cantadas e apregoadas do nosso passado nacional, a dobragem de cabos sempre foi daquelas questões de honra a recordar e a evocar. Quanto mais não fosse, em situações de algum tipo de salão, para sublinhar o conhecimento da história pátria, mesmo que — ou sobretudo se — mais nenhum houvesse. Assim, nomes e cronologia eram ostentados a título de orgulho pessoal. Logo, de Lagos e com direito a registo no guiness por ter sido o primeiro, Gil Eanes e o Cabo Bojador. Depois outros, alguns com certo pendor a S. João Baptista, dados ao renomear de geografias velhas, como Bartolomeu Dias que, uma vez ultrapassadas as tormentas, resolveu dar o caso por pequeno e passou a chamar ao Cabo o da Boa Esperança. Mas chega de exemplos.

Há, no entanto, a considerar que semelhante obstinação em dobrar cabos acabou por se voltar contra nós. E com a vocação marítima parcialmente esquecida, as coisas passaram para um registo mais firme. De pés na terra. Talvez por isso, entre nós, e apesar de uma herança histórica, que tanto se reclama como país de marinheiros, haja ainda tanta gente a falar das cordas com que se amarram barcos, desconhecendo afinal, que todas as amarrações são feitas com cabos (ainda que de natureza diversa da dos citados acima), já que a bordo, de acordo com a gíria naval, apenas há três cordas. A saber: a corda do sino, a corda do relógio, e acorda que está na hora.

Já se vê, portanto, que os cabos, por muito dobrados e bem passados que estejam, ainda são capazes de ser o cabo dos trabalhos. Sobretudo quando — quiçá por vingança de tão específico desconhecimento vocabular — nos apanham pela traiçoeira via da gramática. Descontraídos e sem temer monstros, tempestades e marés vivas, vamos alegremente caindo na armadilha. E assim é ouvir o pessoal a afirmar com descontração e bonomia:

Ó amigo, chegue-se pra lá que eu assim não cabo!

Ou então:

Vês como emagreci? Já cabo outra vez nesta roupa!

E etc., etc., etc.

É certo que antigamente — quando ainda se usavam as mulheres gorduchas — às infelizes às quais calhava um par de pernas delgadas, logo se fazia ouvir a piada de não poder passar por uma certa cidade do Norte senão ainda aí lhes ficavam com elas para cabos de facas. Porém, no “eu cabo” acima referido não há cabo de faca, cabo eléctrico, cabo de mar ou cabo de esquadra que lhes valha. Nem gramática que nos salve. Porque cabo, como forma verbal do Presente do Indicativo, é coisa que não existe em português. O que existe, isso sim, é caibo.

E não vale a pena fazer de conta que não se ouviu ou que se pode disfarçar. É que depois há toda uma série de outras situações que saem directamente desta. Por exemplo, no Presente do Conjuntivo. E, desta vez, por regra da língua, espalhando-se generosa e democraticamente por todas as pessoas da conjugação: para que eu caiba, para que tu caibas, para que ele caiba, para que nós caibamos, para que vós caibais, para que eles caibam

Também não vale a pena aquele triste argumento de que assim não soa bem. A gramática não se incomoda com o domínio dos sons. A menos que esse domínio se chame fonética — país com regras próprias, que não vêm agora ao caso.

Assim sendo, mesmo não soando bem aos menos atentos ou acostumados, paciência. A língua tem manias que as nossas manias tantas vezes desconhecem. Por isso, deixemos lá as estranhezas. E deixemos os cabos onde eles pertencem. Ou seja — e sem desprimor para as esquadras — deixemo-los, de preferência, no mar. Entre barcos e marés, lugares poéticos onde as únicas cordas são as que já sabemos. Para que todos caibamos melhor nesta língua de tantos amores e rumores.

E.F.

Xis, ou o lugar do mistério

Em termos de pronúncia, o português não é uma língua óbvia. É verdade que não chega às confusões do inglês, mas, ainda assim, certas letras nossas teimam em guardar mistérios que desnorteiam alguns dos que aprendem o nosso idioma como estrangeiro.

As vogais estão no grupo dos quebra-cabeças, com a sua pronúncia nem sempre evidente. Se discorda, leia em voz alta: eu como, tu comes, ele come, nós comemos, eles comem… E: eu bebo, tu bebes, ele bebe, nós bebemos, eles bebem… e depois tente arranjar uma explicação para todas as variantes das vogais aqui salientadas.

Com as consoantes, o caso muda de figura, já que há regras a indicar o caminho, em quase todas as situações. Porém, não poderia faltar uma complicaçãozinha.

O Xis, por exemplo, o tal que nos mapas marca o sítio, na vida real raramente aparece como elemento clarificador. Que o digam os matemáticos ou todos aqueles que já alguma vez na vida se confrontaram com equações. Também nós nos podemos queixar dos trabalhos a que o Xis nos obriga, caindo em situações desagradáveis, pronunciando obtusamente a misteriosa letra.

À primeira vista, a culpa não nos cabe. Porque é que a escorregadia consoante havia de ter cinco variantes fonéticas e, ainda por cima, passar sem o apoio de umas pequenas e claras regras para nos facilitar a vida?

Infelizmente, o caso é mesmo assim. Regras absolutas e inequívocas, não há. Clareza também não. Vejamos: o Xis pode ter o som de ch como em xis, xadrez, Xabregas, xaile, bruxa, México; o de ç como em próximo, trouxe; o de s como em exposição, sexta; o de z como em exemplo, exame, exacto, êxito; e, finalmente, o de cs como em fixar, anexar, sexual, tóxico, intoxicação, intoxicado…

Os primeiros casos têm provado não causar dúvida. Todavia, a coisa complica-se quando chegamos aos últimos. E se ainda não chegámos ao ponto de dizer ou ouvir falar em educação "sechual", já o mesmo não acontece quanto a toda a família dos "tócsicos", rapidamente transpostos para a genealogia dos tós e dos chicos. Deste modo, são mais que muitos os acidentes que provocam "intochicações"; pessoas "intochicadas" que deram entrada em hospitais, bem como avisos contra produtos "tóchicos".

O mais grave destas "intochicações" é que muitíssima gente pensa ser assim mesmo que se diz. Há até quem sustente versões combinadas e afirme a obrigatoriedade de se dizer “tócsico” de braço dado com a possibilidade do “intochicado” e da “intochicação”. Não haver uma sinaléctica evidente para as confusões do Xis é uma coisa; atribuir-lhe costas largas a este ponto já é abuso de confiança. Por muitos mistérios que a nossa língua comporte, tudo tem limites. Para que a confusão não se instaurasse mais do que o considerado absolutamente indispensável, criaram-se os dicionários. Ao contrário do que se poderia pensar, não são particularmente difíceis de encontrar. Existem à venda variadíssimas possibilidades de esclarecimento sob a forma de uma agradável pluralidade de edições. Manuseando um desses exemplares, lá encontraremos as respostas às nossas maiores inquietações no domínio fonético. E, entre esses preciosos esclarecimentos, lá está anotada a correcta pronúncia do Xis. E sempre que toma os sons de "cs" lá surge a informação. Não se poderá pois desculpar o erro acusando a falta de meios.

Com esses utensílios tão práticos, o Xis passa a integrar uma “simbologia” de opostos. Oscilando entre os segredos das histórias, a afirmação de Indiana Jones aos alunos de que na vida real ele nunca assinala o lugar, e a fácil descoberta de que, no fim de contas, é um mistério que facilmente se esclarece. Como muito bem sabem os matemáticos.

 E.F.