sábado, 29 de maio de 2010

Plus ça change, plus ça c'est la même chose...

Bem, se a frase existe em francês, deve ser porque nos outros países a coisa também se passa como cá. Mas a verdade é que com o mal dos outros podemos nós bem. O nosso é que dói.
Mas a que propósito vem isto? Simples. Ouvi há dias uma notícia perturbadora: a partir de agora, os maridos homicidas (enfim, os assassinos de mulheres, digamos de modo mais claro) podem escolher entre a prisão e o tratamento psiquiátrico. Fiquei pregada ao chão. Ainda nem acredito que ouvi bem. E, aliás, se alguém tiver a notícia, por favor envie-ma porque eu tenho andado à procura e não a encontro e quero mesmo ter a certeza de que ouvi bem.
Em que é que isto me faz pensar que nada muda? É que, de repente, veio-me à memória uma Farpa do Eça. Um texto publicado em 1871 (e que mais tarde foi recolhido em "Uma campanha alegre") a propósito de um marido, um cidadão de Gouveia, que matara a mulher e fora condenado a varrer as ruas da cidade.
Passo-vos, com prazer, a transcrição:


Uma nova penalidade
Outubro 1871.

«Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fora preso, e condenado...
Reparem bem!
«E condenado... a varrer as ruas de Gouveia!»
De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de decepar suas mulheres. São miudezas domésticas em que não intervimos. Nunca se dirá que as Farpas se arrojam indiscretamente sobre o seio das famílias. Que os maridos, quando lhes convenha, para melhor organização do seu interior, partam suas mulheres aos pedaços — coisa é que nem nos escandaliza, nem nos jubila! Talvez não imitássemos esse exemplo: não por nos parecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte estimada! E entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa — é mais simples ir à cozinha trinchar o rosbife, do que à alcova retalhar a esposa!
Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de Gouveia.
Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo, marca uma pena diversa, não prevendo esse castigo de varrer as ruas de Gouveia — de resto todo Local.
Mas quem sabe se não será uma tremenda penalidade — o limpar as ruas de Gouveia!
Talvez mesmo o juiz — por lhe parecer insuficiente o degredo perpétuo — rompesse no excesso arbitrário de entregar aquele facínora ao suplício imenso de limpar as ruas da sua vila! Bem pode ser que aquele marido esteja cumprindo uma sentença pavorosa, e que o devamos lastimar mais que os infelizes que S. M. Alexandre II da Rússia (que Deus guarde e muitos anos conserve em prosperidade e glória) manda trabalhar, ao estalo do chicote, nas minas de Orilieff! A imundície da província tem mistérios.
Limpar as ruas de Gouveia será talvez a pena que de futuro adoptem, em substituição da pena de morte, os códigos da Europa. Que grande honra, meus amigos, para a sujidade nacional!
Mas uma coisa nos ocorre: — e é que, de ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um emprego municipal, e começa a considerar-se uma pena infamante. E pode acontecer que os srs. varredores de Lisboa — não querendo, por uma susceptibilidade exagerada, passar por terem assassinado suas esposas, deponham com gesto de desdém o cabo das suas vassouras nas mãos atarantadas da câmara municipal! Por outro lado, dada esta greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a suspeitassem de ter empregado o trinchante na pessoa da sua consorte. A única pessoa que afoitamente ousaria varrer as ruas seria aquela de quem se não pudesse suspeitar um crime, aquela que fosse pela lei do Reino declarada irresponsável. Ora há só uma neste caso. É o chefe do Estado. Esse é o único que poderia varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse de pensar que ele andava ali, às vassouradas, por sentença de um tribunal. Esse é irresponsável; não comete crimes, nem sofre penas. Mas seria realmente atroz que S. M. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas, melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho, adiante de si, em nuvens de poeira, a O Diário de Notícias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso: imundície dos seus vassalos!
Que a justiça, pois, nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundície especial e pavorosa das ruas de Gouveia torna realmente essa pena igual à de degredo: ou se o sr. juiz de Gouveia entende que matar a esposa é acto tão meritório, que merece um emprego remunerado pela câmara. Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos.

Eça de Queiroz, Uma Campanha Alegre.
Retirado de http://pt.wikisource.org/wiki/Uma_Campanha_Alegre/I/XXXVI

Ora bem, já vêem ao que venho com o intróito desta posta. Imaginem que, agora, qualquer cidadão que sinta ânsias de matar a mulher, dá conta do caso com a maior ligeireza e pode depois, em vez de bater com os costados num calabouço, entregar-se aos cuidados de um hospital psiquiátrico. Parece-me muito bem visto. Deve ser assim que caminhamos para o progresso. Pelos vistos, às cegas, graças ao braço da justiça, ela, também, invisual, como sabemos. Que grande alegria tanto progresso. Não concordam? Que o digam as 46 mulheres mortas pelos seus companheiros, em 2008 (mais 50% do que no ano anterior); as 26 que sofreram o mesmo destino em 2009. Os números de 2010 ainda não são conhecidos, mas uma notícia adiantava, há dias, que até agora já foram mortas mais mulheres em Portugal do que em todo o ano passado.  
Que dizer? Não há ironia que resista. Que raio de país é este? Não sei se a justiça é cega. O que me parece é que lhe falta, simplesmente, discernimento. 

terça-feira, 18 de maio de 2010

O triunfo da lógica aristotélica


E pronto! Cá está! Porque não acertarei eu na chave do euro-milhões? Cá está! Foi ao lado, é certo, mas andei tão perto... Dizia eu numa posta há horas, que ainda havia de aparecer alguém a acusar os gays da quebra da natalidade. Bem, em linha directa depois desse raciocínio (será que se qualifica como tal?) a nossa sempre "reliable" Isilda Pegado já tinha "pegado" (era irresistível, desculpem) num argumento semelhante: o de que o casamento dos gays, além das "graves consequências ao nível dos valores da nossa sociedade, da educação dos jovens" terá também consequências económicas. E quais? Ora bem: as de quem é vai pagar a velhice desta gente. Pergunta ela e muito bem: "Quem é que trata destas pessoas na velhice? Não têm filhos, nem podem ter netos. Também têm direito a ser tratados, logo, vai sobrar para todos nós. Vai sobrar para os contribuintes." 
Coitada!!! Ninguém explicou à Isilda Pegado que ser gay tem a ver com sexo e não com contribuições e impostos. Que eu saiba, os gays não estão isentos de impostos, portanto deve andar muito gay a pagar a velhice de heteros com e sem família. Depois: ninguém explicou à Isilda que o facto de os gays casarem não os vai tornar mais dados a fugir ao fisco do que quando eram solteiros. Logo, vai continuar a haver gays casados a pagar impostos e a pagar a velhice de heteros com e sem família. E, se calhar, casados e solteiros, a pagar a velhice de actuais velhos gays, com ou sem família. 
Depois: ninguém explicou à Isilda que ser hetero não é condição sine quo non para se ter filhos. Há pessoas que são estéreis, sabia? Independentemente da sua orientação sexual. Que devemos fazer a esses cidadãos? Na velhice, sem descendentes directos, vão ser mais uma carga para os contribuintes. Que fazemos? Exterminamo-los? 
Mais ainda: ninguém explicou à Isilda que ser gay não é condição sine qua non para não ter descendência. Conheço vários gays com filhos. 
E ainda: eu, por exemplo, que também tenho direito à minha opinião e também tenho direito a ter figadeiras de vez em quando, também não gosto de gente intolerante e tacanha. Pela minha parte, também gostava que os meus impostos não fossem usados para garantir não só a velhice como a maturidade (claro que, no seu caso, é conceito que não conhece) de alguns cidadãos, especialmente quando, ainda por cima, são deputados. Como a senhora, por exemplo. Mas, que se há-de fazer? Não posso escolher. Não posso dizer: não quero pagar à Isilda Pegado. Por mim, nem um mísero cêntimo dos meus impostos iria para si, compreende? Mas que hei-de fazer? 
Fico, no entanto, contente que todos os cidadãos do meu país, independentemente da sua orientação sexual e de terem ou não descendência, e de serem ou não estúpidos, possam determinar o que fazer com a sua vida. No meu caso, como vê, o Presidente da República não me desiludiu. Pelo contrário: pela primeira vez, senti que ele passava uma tangente à possibilidade de ser, mesmo que contrafeito, o meu presidente! 
(Harrrggh, isto sim, é que é arrepiante!)



Só mais um desabafo

A professora Bruna Real, ciente do seu bom aspecto físico, resolveu assumir o seu direito a dispor de si (incluindo o seu corpo) e a posar nua para uma revista. Tudo estragado. Suspensa das suas actividades docentes, a Câmara de Mirandela promete agora reconduzi-la, mas a lugar mais recôndito e longe das criancinhas.
Não venho aqui comentar a decisão da Câmara de Mirandela, mas o eterno escândalo que, entre nós, se sente em relação a tudo o que diga respeito ao corpo quando existe suspeita de erotismo ou sexualidade envolvida.
Tal como no outro famigerado caso da docente Josefina Rocha, de Espinho, já aqui comentado, mais uma vez o que importa é a questão sex..sex...sexual. Hum! Isto é um povo de diáconos Remédios. A mim interessar-me-ia mais saber se os docentes que lidam com o meu filho têm uma correcta prática da língua mãe; se não mimoseiam as criancinhas com "fostes" e "hadem" e "entreti-me" e outros descalabros que mostram à saciedade (e à sociedade) que não sabem como é que os verbos se conjugam e portanto que não têm a mais mínima noção da língua que falam... o que significa que a falta de rigor se há-de, inevitavelmente, propagar às áreas científicas que leccionam (lamento a desconfiança, mas cesteiro que faz um cesto faz um cento!).
Sim, do que eu gostaria era de um aturado e actualizado saber das tais áreas científicas; além de uma prática de rigor, responsabilidade, criatividade e exigência com os miúdos, de modo a ajudar a melhorar este triste país. Acharia isso muito mais interessante do que saber que há docentes que gostam de ser fotografados nus ou com roupas mais picantes, desde que esses assuntos, em princípio alheios aos programas escolares, não surjam no domínio da sala de aula, já que nada têm a ver com ela (o que os pais - que fizeram esgotar a edição da Playboy em Mirandela - parecem, de facto, ter propiciado; haverá agora algum miúdo em Mirandela que não saiba do caso?).
Em vez de se preocuparem com estas coisas, valia mais que insistissem na introdução de uma disciplina científica de sexologia que não se limitasse à reprodução mas que instruísse igualmente os miúdos no conhecimento dos seus corpos, que os libertasse dos medos e os protegesse, através do saber, de actividades erráticas (que existem, como todos sabemos!) que geram mais mães adolescentes, miúdos com problemas de saúde causados por Doenças Sexualmente Transmissíveis, e miúdos com problemas psicológicos por questões de identidade sexual, quando esta é tida por "desviante". Continuamos a falar do acessório e a não resolver o que realmente interessa: a bem da saúde e da qualidade de vida de cada um.
Na verdade, se querem que vos diga, estou farta desta mania de achar que tudo o que envolve sexo é porco e pecaminoso. Na minha modesta opinião, o pecado (tal como a beleza..., mas esta "em bom") está na cabeça de quem o vê.
Olhando bem para este país, dá vontade de acrescentar mais um f à célebre trilogia do fado, Fátima e futebol. Parece que na verdade, anda tudo a ver se f... mais esta já triste situação. Se calhar, é mesmo por falta de quecas. E de quecas informadas, criativas e livres!
O sexo faz bem à saúde. Divirtam-se mais e, assim bem dispostos, produzam alguma coisa, por favor! Do que este país precisa é de sair da crise e não de andar a espiar a pobre Bruna (e outras Brunas e Brunos) e a metê-la em parte incerta só porque ela se despiu para uma revista... que vocês todos, seus manganões!!, foram espreitar!

Sinónimos de tolerância: "abjecto e aberrante"

E pronto! Começou o circo.
O Presidente da República, que até foi com a família toda fazer vénias ao Santo Padre, está a desiludir a maioria dos portugueses católicos (praticantes ou não)! Ao passar as questões do casamento homossexual de volta à AR, deixou muitos católicos à beira de um ataque de nervos. Uma senhora da Póvoa, manifestando (no debate de hoje da Sic Notícias) a profunda "piedade e alegria" que lhe causou a visita de Bento XVI, exaltou-se segundos a seguir com o casamento dos homossexuais, chamando a essas pessoas "abjectas e aberrantes". Estou em crer que, se estivesse em estúdio, tinha largado a distribuir estaladões com a mesma piedade e alegria com que recebeu a boa nova. Um rol de católicos tem acorrido ao debate com o desespero na voz. O país está a arder, há falta de crianças... não tarda nada e algum mais dado à lógica aristotélica vai juntar premissas e concluir que os gays é que são os culpados pela baixa de nascimentos.
Em estúdio, o argumento de um dos participantes, defensor do casamento mas sem gays, é que o casamento é a base da sociedade e que foi "organizado" dada a importância social que detinha. Por acaso, sempre me pareceu, por questões históricas, que o casamento tinha começado por uma questão de passagem patrimonial. E parece-me que é essa exactamente a questão em torno do casamento homossexual: a das heranças. Parece-me que todos nós gostaríamos que, na nossa morte, os nossos bens passassem para a posse da pessoa (ou pessoas) mais próxima, da que mais amámos.
A mim espanta-me que os católicos (ou, enfim, estes mais ortodoxos que vêm à praça pública com as suas tochas), que têm tão facilmente o amor na ponta da língua, tenham tanta dificuldade em perceber uma questão tão simples, mas, se calhar, é porque eles andam descrentes no casamento, como o prova a alta taxa de divórcio entre eles. A esses interditos (sim, interditos, amigos: o Papa disse-o com todas as letras "O casamento é para a vida"!) fazem eles orelhas moucas. Que grande aborrecimento estas contradições! Em cada um dos seus casos particulares, os mesmos que apelam aos valores católicos estão-se pouco lixando para as normas que lhes atrapalham o quotidiano. Fé sim, mas que os imperativos sirvam para os (e sejam impostos aos) outros. Porque, pragmaticamente, eles, como católicos, sabem que não estão dispostos a sofrer. O Papa diz que o casamento é para a vida? E eles ralados...
Provavelmente, isto é tudo uma questão de nomenclatura. Se lhe chamassem outra coisa, se calhar havia menos problema. Mas porque é que havemos de lhe chamar outra coisa? O amor, por exemplo, não é sempre o mesmo? O contrato, por exemplo, não é para ser feito no mesmo propósito?
O problema, parece-me, é que as pessoas gostam muito de meter o nariz onde não são chamadas. Porque é que não compreenderão que cada um sabe de si e que os afectos não escolhem géneros? E que, já agora, se não escolhem géneros, porque é que as pessoas não hão-de poder associar-se como decidirem?
E, só para terminar, "abjecto e aberrante" é reclamar para si o poder de dizer aos outros como é que hão-de viver, o que hão-de sentir e por quem. Sobretudo quando, simultaneamente, esses moralistas reclamam também para si a religião que mais prega o amor ao próximo. Por "piedade e com alegria", metam-se na vossa vida e deixem de se meter na cama e nas casas dos outros!!

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Quando a fé não nos arranja um lugarinho a jeito

Apesar de o Santo Padre ter vindo a Portugal congregar os fiéis em torno da mensagem... - e afins, que eu não sou do ramo e não sei pôr a coisa de modo mais claro - parece que já começaram (ou pelo já se prometeram) alguns desacatos. Ainda hoje de manhã ouvi na TSF algumas fiéis indipostas porque, depois de horas e desoras de espera para verem Sua Santidade ao vivo e a cores e, de preferência, de bem perto, acabaram por ficar em lugares menos bons de onde, infelizmente, não estavam a ver nada. Um desassossego, está bem de ver e um tremor na voz que indiciava um pezinho no "estou aqui estou a distribuir uns chapadões"...
Bem, voltamos a um clássico. O ser humano é mesmo repleto de contradições. Por um lado, tudo são flores e passarinhos no discurso, e ai que deus que ficamos mais perto do altíssimo e etc. e tal. Por outro, se não me deixam ver tudo com todo o pormenor estão aqui estão ali.
E veja-se como o mundo é injusto: logo eu, que não faço qualquer questão de ver o Papa, estou sempre a tropeçar nele (algum crente poderá até ver aqui uma tentativa de conversão simbólica..., mas não vale a pena irmos por aí, que é tempo perdido): cada vez que ligo a televisão, lá está ele.
Sugestão aos desgostosos e diligentes fiéis: porque não ficarão eles confortavelmente em casa, como eu? Logo veriam o Papa sem qualquer dificuldade... e não se sentiriam na tentação (sempre a um pé do demo) de pespegar umas lamparinas no fiel que teve mais sorte com o lugar.

terça-feira, 11 de maio de 2010

E o Estado? Ainda é laico?

Hoje deu-me para ser perguntadeira. Isto porque, apesar das celebrações dos 100 anos da República, parece-me que a coisa anda ligeiramente esquecida.
Pergunta 1: Foi para isto que mataram o Rei e o príncipe herdeiro? (Não só não mereciam, como não teve interesse nenhum; já para não dizer que andar por aí aos tiros não tem mesmo interesse nenhum. Digo eu.)
Pergunta 2 (e anexo): O Estado não é laico? Então porque é que pára tudo por causa do Papa, mesmo os não católicos?
Pergunta 3 (e anexo): Não estamos a precisar de maior produtividade? Então porque é que pára tudo por causa do Papa, mesmo os não católicos?
Pergunta 4: Porque é que num país que começou à revelia do Papa da altura, agora vai tudo — incluindo o Presidente da República — pedir a bênção a Sua Santidade?
Pergunta 5 (em puro exercício de retórica): O que pensaria hoje D. Afonso Henriques de tudo isto?
Pergunta 6 (mais um exercício de retórica): Porque é que o Presidente da Câmara de Lisboa ofereceu a chave da cidade a Bento XVI se: 1) ele não vive cá, nem consta que se queira mudar. 2) Ele quando cá vem tem onde ficar e até lhe abrem a porta. 3) A cidade nem sequer tem portas.
Pergunta 7 (e anexo): Sou só eu ou mais alguém encontra neste estado da nação o reviver de uma estranha trilogia "fado, Fátima e futebol"? (Não necessariamente por esta ordem...). Mas o Estado... ainda é laico?
Pergunta 8 (e anexos): Porque é que os líderes dos clubes de futebol foram oferecer camisolas ao Papa? Ainda não perceberam que ele anda sempre vestido da mesma maneira? Ou acham que ele vai usar aquilo quando andar por casa?
Pergunta 9: Porque é que os jovens católicos adaptaram um velho êxito disco "You're just too good to be true", cujo refrão é uma histeria de "I love you baby" e afins, quando já se percebeu que o Papa é todo contido e deve gostar mais de Aves Marias do que de remissões para épocas de loucura e sexo desenfreado?
Pergunta 10 (e anexo): Porque é que o Prós e Contras (programa da televisão estatal) de ontem só teve Prós? O Estado ainda é laico?
E uma última observação: depois da missa do Terreiro do Paço, uma fiel emocionada dizia que o Papa lhe tinha excedido as expectativas (pelos vistos, eram baixas, porque ainda estava muito ligada à imagem e ao carismo do antecessor) e que esperava que isto fosse bom para Portugal, por trazer esperança e fé. E concluía: porque a fé é a última a morrer. Aqui, ela que me desculpe, mas tenho de me meter. A última a morrer, cara senhora, não é a fé: é a esperança. E, garanto-lho: palavra de agnóstica. Eu esperança tenho sempre. Sou uma optimista nata. Fé é que nem por isso. No meu caso, posso dizer-lhe: a fé foi mesmo a primeira a morrer. Mas, enfim, se a fé é que nos salva e já que de repente se redescobriram tantos fiéis nesta República (80%, ao que parece; será que sabem todos que não se podem divorciar, que o sexo é só para procriar e que a homossexualidade é doença?), pode ser que venha aí algum milagre. Eu, como digo, não tenho fé, mas como a esperança é mesmo a última a morrer, pode ser que entre todos consigamos um ponto de encontro, lá longe, no tal horizonte hipotético em que duas paralelas se unem.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Henrique Grandeiro: a PT - e a comissão de inquérito - em versão "curto e grosso"

"Quando se propõe uma coisa a uma senhora, se ela disser não, pode ser talvez; se ela disser talvez, pode ser sim; se ela disser sim, então não é uma senhora". Assim, com todo este rigor e decoro, usou Henrique Grandeiro da palavra, em plena comissão de inquérito. Pouco interessa aqui o contexto (uma vez que o assunto não versava comércio carnal, o contexto - embora referente a negociações entre empresas, comparadas a negociações com senhoras - lança malévola luz sobre a figura e a sua falta de estilo), o que interessa são mesmo as palavras. E o pensamento subjacente. O presidente da PT (não, não é um mero empregado subalterno, é mesmo o presidente) manda bocas. Escusado será também investigar de onde lhe vem um saber tão próximo de casas de passe; provavelmente um "valor" passado em casa, em tradições ancestrais em que as mulheres valiam menos que nada; em que para serem consideradas valia tão-só a sua imagem de senhoras, por oposição à de mulheres: leia-se putas. Mas mais escusado ainda era, em pleno século XXI, vir um presidente de uma das maiores empresas portuguesas, armado de cretinices (ou há um nome mais científico para isto? Ah, misoginia, não é?), ofender de uma penada as mulheres, definindo-as como escusas e, quando finalmente assumidas como seres de direito que sabem o que querem, reduzidas a putas.

Pior? Muitos (todos?) os membros bem pensantes da comissão de inquérito se riram. Riram-se de quê, senhores deputados? Da vossa própria falta de nível? Da mesma falta de nível e seriedade que faz com que percam tempo com vírgulas e outros acessórios para esconder a vossa incapacidade de resolver os problemas do país?

Depois queixam-se de que o primeiro ministro responde a um deputado (que lhe chamou manso) com um (outro) deselegante "manso é a tua tia". Queixam-se de quê, senhores? Se estão todos perfeitamente bem uns para os outros, incapazes de civilidade e competência, apenas capazes da boca soez e boçal, do riso aparvalhado e insultuoso. Estão à espera de quê para merecerem os lugares que ocupam e o salário que os portuguesas e as portuguesas (nem todas inúteis dondocas, nem todas putas, senhores!) vos pagam? Decoro, senhores e, já agora, tento na língua!

Sábado, 20 de Junho, depois das 16h00

Em frente ao Museu de Arte Popular. 
Boas ideias. Interessante debate. 
E agora?

MAP, 1

MAP, 1

MAP, 2

MAP, 2

MAP, 3

MAP, 3

Nova acção a favor do Museu de Arte Popular

Sábado, 20 de Junho, em frente ao museu, pelas 16h00. 
Não faltem!


[sobre as variantes do Hipericão ver 
http://cantinhodasaromaticas.blogspot.com/2008/06/hiperico-do-gers.html]

Um lembrete positivo

Um Michael Caine personificando um magnífico Alfred, pergunta a Bruce Wayne, sujo das chamas que deitaram abaixo a sua mansão: “Why do we fall, sir? So we can learn to pick ourselves up.”

Uma fala sábia de uma personagem cujo actor tem, na vida real, um lema magnífico: “Use the difficulty.”

Um lembrete maravilhoso nos dias difíceis de atravessar. Para quem quiser usar.

À laia de introdução

Começo hoje a publicar este breve glossário. Continuará por ordem alfabética, como convém a um bicho do género. Quaisquer acrescentos a letras entrarão também em cena pela mesma ordem.

Glossário de generalizações ou alguns parágrafos-guia para bem entender este país

A

Acentos — Fazem parte do corpo das palavras. Têm uma função. Não são elementos decorativos. Normalmente esquecidos pelos mesmos inventivos que depois põem bolas em cima dos ii.

Ambição — Juntamente com o optimismo, uma das forças que faz andar a humanidade. É o sentimento que nos faz querer mais, ultrapassar os obstáculos, desejar, sonhar. Para não nos lançar na selvajaria, deve ser temperada com escrúpulos. Em Portugal, é sempre vista como uma malfeitoria. Já assim era entendida no latim, que lançou esta maldição sobre o desejo. O que faz uma definição nefanda...

Antigamente — Advérbio de modo. Do modo correcto. Antigamente é que era bom. Tempo indefinido mas claramente definido no passado. O antigamente é sempre garantido. Os gregos chamavam-lhe a Idade do Ouro. Em Portugal é simplesmente antigamente. Vagamente depois do tempo em que os animais falavam e claramente antes de nos tornarmos adultos. Antigamente tudo sabia melhor. As pessoas eram mais simpáticas. Lia-se mais. Havia menos insegurança. E mais liberdade. Quando eu parar de rir, vou voltar à lista.

Ar — Aquilo que respiramos. Mas também aparência. Verosimilhança. Apesar de ninguém viver dele (com a excepção dos fazedores de leques e da indústria do ar condicionado), o ar condiciona a nossa vida. Faca de dois gumes. Porque ter ou dar(-se) ares (de alguma coisa) é algo a desejar e a temer. Exemplos: Fulano tem ar de parvo. Sicrano tem ar de boa pessoa. Fulana dá-se ares de estrela de cinema. Aquele dá ares de rico. Não precisamos de ir mais longe. O ar é tudo. Para quem não é, ar basta.

Artista — Jeitoso, habilidoso. Trafulha. Quando morto, é bestial; quando vivo, não passa, com sorte, de grande besta. Inapto e inerte. Equivalente a intelectual, mas sem a cabeça. Os antigos é que eram bons. Faziam um trabalho escorreito, bem feito, com claro saber do ofício. E que se percebia, que tinha mensagem. Os de agora não sabem fazer nada, só fazem coisas sem nexo para chatear o público. Nós. Porque é que aquilo é arte? Grandes artistas! Aquilo também eu fazia...

Água benta — Material que, a par da presunção, é tomado de acordo com a vontade de cada um. Em Portugal, mesmo com crise de vocações e com crise de clientela nas igrejas, presunção e água benta têm futuro garantido.

Autismo — Desordem do foro neurológico; compromete a capacidade de comunicação. Não compromete, porém, a inteligência (lembram-se de Rainman, o filme?). Aquilo de que os políticos se acusam mutuamente (e desadequadamente) de padecer. Porém, neste segundo caso, como se percebe pela usual, estrutural, epidémica e manifesta falta de inteligência, não se trata de autismo, mas de bolha.

Automobilista — Aquele que conduz um automóvel. Aquele que dirige. Entre nós, dada a nossa propensão a deixar-nos conduzir, é confundido com líder e, por vezes, com ditador. Daí que automobilista seja entendido e comummente aceite como aquele que impõe a sua vontade. Vem daí a sua legitimidade em andar na estrada como se estivesse sozinho em casa.

Automóvel — Literalmente, aquele que autonomamente se move. Não confundir com objecto de arremesso ou toiro. O primeiro porque, por definição, o objecto arremessado não se move sozinho: é movido; o segundo porque, apesar de o toiro também poder, em essência, ser definido como um auto-móvel, visto mover-se por si mesmo, não cumpre a função de veículo motorizado. Embora haja muita gente a tourear nas estradas, resolvendo no asfalto aspectos menos interessantes da sua índole, nem o toiro é automóvel nem o automóvel devia ser utilizado para andar a fazer faenas aos outros. Ainda assim, é o que se verifica as mais das vezes. Talvez por isso, e dada a grande taxa de mortalidade nas nossas estradas, persista, nas vozes tremidas de certos fadistas, o sucesso do célebre fado que lamenta: “Foi um toiro que o matou”.

Autonomia —  Do grego auto + nomos, a palavra significa, na origem, território ou lei própria. Exercício de reflectir e agir por si mesmo. Usada sobretudo no domínio da ciência política ou da filosofia, em Portugal a autonomia tem um uso comum muito mais prosaico, reduzindo-se, nos últimos anos, à tecnologia de ponta. Deixando de ser a capacidade de independência judicativa, territorial ou económica passou a ser o tempo que o telemóvel aguenta em conversas… ou parado. Eventualmente, a autonomia pode também ser aplicada à bateria dos computadores portáteis ou ao depósito do automóvel. No aspecto automobilístico, convém lembrar a existência, em Portugal, de um tipo particular de autonomia. A que se passa em relação ao código da estrada. Cada cidadão português portador da licença de condução tem o seu próprio sentido de autonomia, que se confunde com o conceito de privacidade. Tirando isso, nada mais interessa.

Autoridade — Qualidade de autor; aquele que sabe do seu valor. Que tem saber e experiência própria. Exemplo: fulana é uma autoridade na matéria. Antónimo de autoritário. Noutro sentido, autoridade é também aquele que age para a manutenção da ordem. Polícia. Em Portugal, dado o sucesso da verosimilhança, no primeiro sentido do termo também serve aquele que dá ares de saber alguma coisa. Suspeita-se por isso que os lugares de topo, mais próximos dos ventos impantes, se dêem mais ares que os demais. Autoridade máxima. Não confundir com cabeças de vento. Sinónimo de autoritário.

Autoritário — Aquele que se firma numa autoridade excessivamente forte; ditador. Em Portugal, de um modo mais abrangente, todo aquele que tem uma opinião diferente da nossa e que a defende com veemência (ainda que não nos obrigue a pensar como ele). Chato.

Autoritarismo — Modo de impor aos outros a nossa vontade mesmo que se encontre isenta de razão. Associado ao poder ilegítimo. Os políticos profissionais são com frequência acusados de padecer desse defeito. Porém, em Portugal, o deficit democrático faz com que todos vejamos com maus olhos o facto de haver opiniões diversas das nossas. Num extraordinário passe de mágica, o autoritarismo dos outros constitui uma excelente desculpa para a nossa cobardia. Exemplo: eu devia dizer-lhe o que penso, mas o gajo é um autoritário e não me deixa. Isenção da capacidade de usar a liberdade. Como é que era a máxima? O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.

 

B

Bolha — Substantivo. Pequena zona de ar rodeada de matéria por todos os lados. A bolha, também conhecida por veneta, referencia exemplarmente a capacidade de decisão dos portugueses. Modo pessoal e intransmissível de ser. Funciona por impulso e não por razão. Apetite súbito. Exemplo: ele fez aquilo porque lhe deu na bolha. O contrário de ser criterioso.

 

C

Carta — Documento escrito, geralmente de natureza íntima, pessoal e intransmissível. O seu uso mais comum, em tempos de email e de SMS, e com a excepção das cartas de marear e das de jogar, reduz-se actualmente à Carta de Condução. Talvez resida aí a explicação para os portugueses terem uma tão pessoal noção do código da estrada e das normas de civilidade ao volante. Quem lhes passou a carta de condução não lhes explicou que o que aí se assume é um princípio de boa vizinhança. Uma espécie de não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. Ou mesmo, como diria o Bernard Shaw, não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti: os gostos deles podem não ser os mesmos. Adiante. Não lhes explicaram, portanto, coisas essenciais. Ou seja, passaram-lhes a carta mas não lhes passaram cartão.

Coerência — Qualidade daquele(a) que não cai em contradição. Diferente de teimosia. Coerente é o(a) que procura a lógica do pensamento e age em conformidade. Em Portugal, coerência é pensar sempre o mesmo, do princípio ao fim da vida, mesmo que a experiência nos ensine que estamos a pensar mal. Antónimo de traidor. Sinónimo de burro.

Competência — Definição geral: correcto cumprimento do exercício das funções atribuídas. Exercício de rigor. Profissionalismo. Definição portuguesa: atitude de desafio adoptada por alguns indivíduos, com sede de protagonismo. Antónimo de competências. Os que são competentes no que fazem raramente invocam as suas competências. Os que têm sempre as competências na boca são geralmente os que matam qualquer hipótese de competência. Exemplo: Não posso fazer isso (mesmo que o saiba e possa fazer) porque não é das minhas competências.

Contemporâneo — Aquilo que é do nosso tempo. No plural, passam na RTP1 e são uma das formas mais estupendas de limpeza hepática. Em hipericão, do melhor que tenho visto. Chapelada.

Coragem — Literalmente, o que move o coração. Valentia. Ousadia. Nobreza de carácter. É corajoso(a) aquele(a) que confronta o medo, o perigo, as ameaças. Em Portugal, a coragem tem duas grandes manifestações nacionais: a tourada (e as largadas de touros) e a condução a 250km/hora.

Cultura — Nome genérico dado a todas as práticas humanas, desde o cultivo do solo, às crenças, valores, regras, usos, comportamentos, acções, criações. Íman turístico e valor económico já estudado como gerador de riqueza, seja pela gastronomia, música, arquitectura, literatura, artes plásticas, teatro, qualidade do azeite, do vinho, das praias ou limpeza das ruas. Os países que acarinham a cultura ganham com ela. Os que a desdenham não só não a querem comprar como a perdem. Em Portugal, para quem tiver dúvidas quanto ao grupo em que nos encontramos, basta respirar. Domina o cheiro a naftalina e a formol. Quando não a pólvora: sempre que ouço falar de cultura, puxo da pistola.

Criatividade — Capacidade de criar, inventar ou inovar em qualquer área do saber humano. As áreas mais citadas e valorizadas internacionalmente são as artísticas, científicas e desportivas. Em Portugal, este conceito abrange sobretudo o domínio do quotidiano e exerce-se na capacidade resiliente de dizer não a todas as formas de originalidade. As demais áreas, valorizadas internacionalmente, são entre nós consideradas sobrevalorizadas, sendo por isso geralmente enquadradas no conceito de exibicionismo. Embora alguns estrangeiros ignorantes (e alguns portugueses com a mania) tomem a nossa criatividade por imitação (veja-se a apresentação das actrizes nos Globos de Ouro, completamente diferente da fórmula usada este ano na cerimónia de entrega dos Óscares), a nossa criatividade é que a boa. Sai mais barata e comporta muito menos riscos.

Crise — Palavra ambivalente. O I Ching afirma que é nos momentos de crise que se vêem os grandes homens. A culpa nacional prefere cultivar a máxima que nos momentos de crise ainda se vê menos (sejam grandes homens ou o que quer que seja) do que nos de prosperidade. Desculpa perfeita para não fazer nada. Que grande alívio, esta crise!

Critério — Do grego kriterion, que significa norma de julgar, capacidade de distinguir o verdadeiro do falso. Dado usado para a avaliação ou escolha. Norma de confronto, comparação. Em Portugal, é geralmente confundido com perda de tempo.

Criterioso — Aquele tem critérios, normas. Para os que têm conhecimento do étimo, o termo é tomado como sinónimo de honesto. Em Portugal é, contudo, geralmente confundido com maniento ou obcecado, sendo por isso usado como insulto. Chato de merda.

Crítica — Capacidade de julgar, de avaliar. Exercício do exame racional isento de preconceitos. Pressupõe, por isso, capacidade de formação, informação e análise que não apenas é capaz de julgar o valor do que é avaliado como, também, de produzir um raciocínio dotado de algum valor. Estando o valor bastante desvalorizado entre nós a crítica vem fenecendo, bastando para nós o muito mais intuitivo e sadio uso da maledicência.

Culpa — Conceito religioso relacionado com a queda, a falta original. Diferente de responsabilidade, conceito laico que tem apenas como pretensão a indicação do autor (responsável) de uma acção. Em Portugal, talvez por vivermos num Estado tendencialmente laico há menos de 100 anos, a responsabilidade tem escasso uso; o português prefere a culpa, sobretudo para se livrar dela. Talvez por a usar em termos esmagadores, absolutos: eu não tenho a culpa. Mal amada, a culpa permanece como no velho adágio popular em que se refere que morreu solteira.

Glossário de generalizações, parte II

D

Desenrasca — Substantivo masculino. Tradicionalmente considerado a grande valia do português. Estudos recentes sustentam, porém, que o reiterado falhanço no uso da cabeça provoca atrofia a vários níveis.

Desviar-se — Verbo, de raízes dúbias e ancestrais, claramente caído em desuso, e que anuncia a necessidade de o sujeito se afastar de um obstáculo. Em Portugal, raramente  é usado na primeira pessoa (do singular ou do plural), ficando sempre para o(s) outro(s) a observação desse procedimento claramente incomodativo. Servindo à perfeição a máxima filosófica do quem está, está; quem vai, vai, o uso do verbo na sua forma reflexa reflecte assim o nosso sossegado descaso perante a partilha do espaço comum. Exemplo do uso do verbo: Eles que se desviem.

Deus — Conceito abrangente de que nos socorremos quando a vida nos corre mal, quando corre bem e quando temos dúvidas. E quando não queremos ter a culpa das nossas acções. Já muita coisa se escreveu à cerca de deus. Provavelmente só falta falar num atributo específico da sua natureza: tem as costas largas.

Difamação — Fazer o mal sem olhar a qual. Exercício perfeito para quem quer mandar umas bocas só porque sim. Não exige confirmação, confrontação, nem reflexão. Pré-congelado do juízo crítico. Também sinónimo de inércia do pensamento. Para quê pensar nas consequências, se pode divertir-se tanto no processo? Diga agora, pense depois. Ou nunca. Ideal para ser usado em países com baixa literacia e nula capacidade reflexiva. Em épocas mais dramáticas já levou muita gente à fogueira. Agora liberta menos dióxido de carbono mas continua a ser igualmente letal.

Doutor — Adjectivo de uso epidémico em Portugal. Também usado como substituto de título nobiliárquico ou como primeiro nome: “O meu nome é Doutor X…”. Aquele cujo maior objectivo na vida é tirar um curso (qualquer curso), para poder apresentar-se como tal e para poder ter as letras Dr. no livro de cheques e ser tratado com maior deferência nos lugares públicos, em especial em funções que em nada se relacionam com o título que ostenta, como quando vai à mercearia, por exemplo.

 

E

Escrúpulo — Exercício da dúvida; consciência, hesitação ou inquietação. Aparece sobretudo num espírito crítico e armado de ética. Excelente guia para a ambição, torna-a numa postura comedida, em que os fins não justificam os meios. Em Portugal, é visto quase exclusivamente como um embaraço ao sucesso. Escrupuloso é, portanto, sinónimo de parvo. De alguém que deixa passar as oportunidades. Fatalidade. Mal do destino. Exemplo: coitado, é boa pessoa.

Ética — Em geral: observação dos princípios que orientam o comportamento humano no respeito pelos valores e pelas normas sociais. Princípios gerais de boa conduta. Assunção geral de que não vale mesmo tudo menos tirar olhos. De que os outros devem ser considerados fins em si e não meios para atingir um fim. Em Portugal: conceito elástico que se aplica de acordo com as conveniências. Se, dado um determinado objectivo, for preciso dobrá-lo e até parti-lo, não há qualquer inconveniente. Caso contrário, a ética não passa de um empecilho. Ou de uma mania.

 

F

Falta de educação — Modo simplista português de usar conceitos mais complexos e rigorosos como a frontalidade e, por vezes, também a independência. A confusão tão vulgar entre nós resulta de simples desatenção, já que a má educação se manifesta claramente na maneira abrutalhada de falar e de se dirigir aos demais, bem como no uso ostensivo e invasivo do silêncio. Ausência absoluta de reconhecimento de qualquer norma comum de civilidade. Em Portugal, a má educação grassa, por ser considerada sinónimo de qualidade. O seu uso dá ares de se ser mais fino, mais importante e melhor profissional. Se é bruto é porque é bom. Sinal exterior de sucesso e estatuto.

Fobia — Ódio, rejeição, obsessão. Diferente de mania. Exemplo: um homofóbico não é um tipo com a mania dos homossexuais. Pelo contrário. Vejam lá se percebem isso de vez. Ou então percebam-se de vez.

Frontalidade — Qualidade do que é frontal; que diz as coisas pela frente. Em Portugal, dada a falta de prática da sinceridade, confunde-se frontalidade com mera falta de educação. Mas não se iludam; frontalidade não é isso. É mesmo dizer as coisas de um modo directo.

Futebol — Visto em todo o mundo como desporto, em Portugal é, simultaneamente, um tema de debate e um problema nacional. Karma português. Início de quase todas as conversas. Ou para quebrar o gelo, ou porque não há mais assunto. Ou para evitar outros assuntos. Fim de quase todas as conversas.

G

Gosto — Pessoal mas transmissível. Aquilo que mais se discute. Mas que menos se gosta de discutir. Verbo maltratado e desrespeitado. Os gostos podem variar, mas quando se gosta é sempre com “de”. Gosta-se de alguém ou de alguma coisa. E mesmo quando não se gosta é com de. Gosto de gatos. Não gosto de gente estúpida. Também não gosto de gente que usa o verbo gostar sem de. Questões de gosto. E de gramática.

Grama — Apesar de terminar em a, não é um substantivo feminino. Unidade de medida de massa (vulgo, peso), o grama é masculino. A grama só existe no Brasil, onde serve para repousar ou passear. Cá, dá pelo nome de relva. Quanto ao fiambre, queijo, presunto ou outros petiscos, pedem-se aos duzentos, trezentos... gramas. Vá lá, nem tudo é unisexo.

Gramática — regras de uma língua que esclarecem o seu bom uso e possibilitam a comunicação. Em Portugal, a gramática é considerada uma maçada, e dado o seu decorrente desuso os problemas de comunicação têm aumentado exponencialmente. (Ex-po-nen-cial-men-te: para alguns portadores de recentes graus de licenciatura, quer dizer que que são bués.)

Enquanto preparo algumas notas...

... vou partilhando convosco alguns textos que escrevi já há uns anos, sobre o mau uso do português. Nunca os consegui publicar porque me diziam sempre que eram "giros" mas que não interessavam aos leitores, por serem muito específicos. Deve ser o mesmo problema que faz com que continuemos a falar mal a língua que bebemos com o leite materno. 
Esta mania de que falar mal português não é um problema é uma das minhas maiores figadeiras. Por isso sigo com apreço o trabalho do José Mário Costa e da sua equipa do Ciberdúvidas e do programa Cuidado com a língua. Daqui o meu apreço e o meu agradecimento pelo excelente serviço que estão a prestar. Assim lhes prestem a devida atenção.

Os jogos do logo

 No princípio era o Verbo. Vem escrito na Bíblia. Não que no princípio tudo se resumisse à gramática, é claro, mas que no princípio era o ser. Não cabe aqui discorrer sobre essas importantes questões teológicas, mas apenas lembrar a vontade de revelar. A linguagem, ao nomear o mundo, não se limita a mostrá-lo. De facto, cria-o. Como todos sabemos, semelhante tarefa nem sempre se demonstra fácil. O logos que os gregos inventaram tinha, assim, essa nobre missão: em si reunia a palavra, a razão, e o próprio mundo — expressão de uma razão divina que o organizara. Os cristãos, na senda da tradição bíblica, chamaram ao logos o verbo de que já falámos. O conceito, guardião de múltiplos tesouros, acrescia-se de dificuldades interpretativas jamais completamente aclaradas com o correr dos séculos.

A língua portuguesa, herdeira de muitas outras, embora principalmente do latim, tem também as suas costelas gregas e delas aprovou o uso teológico e filosófico do logos, assim mesmo tomado simples ou em compostos como a biologia, filologia, meteorologia, e outros. Não satisfeitos, porém, com esse uso comum a outras línguas, os portugueses resolveram dar ao logos um destino singular.

Assim, surgiu o logo. Longe, contudo, de por perda de plural, se ter simplificado, o logo arvorou-se de importâncias, determinado a não desmerecer a memória complexa de tão gloriosa raiz. E eis que surge toda uma riqueza que não deixa de confundir os estrangeiros. Se nunca pensou nisso, e a pintura do caso lhe parece exagerada, tente então explicar o que significa logo. Pois é; pode ser mais tarde, /imediatamente/assim que, e até portanto/por conseguinte.

Não lhe parece? Então vejamos.

Quando começa a Primavera aparecem logo muitas pessoas com alergias. e algumas delas até ficam irritáveis. O meu vizinho B. é uma delas. Ainda hoje, ao chegar a casa, o encontrei no átrio. Passei por ele e cumprimentei-o mas ele não me respondeu. Logo, ou estava mal disposto ou distraído, porque normalmente é muito afável.

Logo que cheguei a casa o telefone tocou. Era M. a convidar-me para ir ver uma peça no dia seguinte. Como gosto muito de teatro disse-lhe logo que sim.

No dia seguinte, de manhã, telefonei-lhe para confirmar. Perguntei-lhe:

— Então, já tens os bilhetes?

— Ainda não. — respondeu. — Só logo é que os vou comprar. Vou logo a seguir ao almoço. Telefono-te logo a confirmar. Até logo.

Então? Agora já lhe parece que não houve muito exagero nas pinceladas acima ensaiadas? Mas, sim, podemos concordar que na maioria dos casos referidos, o uso, iluminado pelo contexto, até é evidente. O único que não é tão claro é o do momento em que M. afirma: "Telefono-te logo a confirmar." Porque, aqui, este logo é quando? Logo a seguir à compra? Logo mais — mais para o fim da tarde? Logo se verá. Mas aqui temos um logo novo: o do momento exacto. Ou da hora agá. Em que ficamos, então? É claro: nós podemos sempre esclarecer a situação, mas a graça da história está precisamente na não evidência.

E não são apenas os estrangeiros à língua que a notam. Também nós temos necessidade de aclarar, logo de início, algumas frases, dizendo desde logo: telefono-te mais logo; enfim, ligo-te logo que possa…

No até logo não surgem dúvidas de ser até umas horas mais tarde; qualquer encontro para daí a menos que horas fica cingido a um magro até já.

Postura mais alargada tem o Brasil. Também, não é caso para menos. Em país de tão larga geografia, porque havia a expressão de ficar atrofiada? Aí, quando um brasileiro diz até logo, não significa que seja até daí a umas horas, mas até mais ver, ou até um dia, até à vista, reencontro de data incerta mas seguramente distante no tempo.

Enfim, como podemos observar, o logos inicial trouxe-nos muita riqueza. E se, mesmo singularizado, ele se pluralizou de significados, talvez tenha sido apenas para nos revelar mais facetas de si e de nós mesmos. Assim se espera, pelo menos. Enfim: logo veremos.

E.F.

 

INFERNOS

Quando ocorreu o bíblico episódio da torre de Babel, decerto ninguém poderia supor que as consequências viriam a ser tão estranhas e complicadas. Só para recordar a história, quando os homens tentaram construir uma torre que chegasse ao céu, Deus, enfurecido, resolveu destruir-lhes a obra e gerar a confusão, fazendo com que passassem todos a falar línguas diferentes.

O que não vem na Bíblia, depois, diz respeito à criação dessas línguas e à lei das compensações. Assim, aos chineses calhou uma escrita complexa, mas uma gramática genialmente simples. Quanto a nós, a história é diferente. O português tem uma gramática bem mais complicada, mas também é certo que alguma coisa teria de compensar a simplicidade da escrita alfabética. Para contrabalançar, então, somos atacados pelos tempos verbais. Felizmente, dizêmo-los de ouvido porque os conhecemos desde o berço, sendo assim poupados aos dramas de uma aprendizagem em idade adulta.

Por isso, fazemos essa ginástica verbal com toda a desenvoltura. Articulando múltiplos passados, presentes e futuros. Eu fui, eu ia, eu tinha ido, acabei de ir, se eu tivesse ido… etc.; eu faço, eu estou a fazer (ou estou fazendo), talvez faça, etc.; e direi, vou dizer, quando disser, hei-de dizer… e por aí fora.

Suficiente para enlouquecer, com justa causa, qualquer chinês, habituado a pensar apenas no infinitivo dos verbos, indicando o tempo com um antigamente, hoje ou amanhã, ou ontem, ou um dia. Contudo, também é verdade que as sementes de loucura se podem instalar igualmente entre nós, pondo a nu as tais chatices decorrentes do episódio citado no início.

Tomemos a construção "haver de". Aparentemente, não tem nada de mais. Todos nós sabemos que, quando dizemos "eu hei-de ir ao Japão, um dia" não estamos a expressar senão uma intenção. Havemos de o fazer. Um dia. Quando? Desconhecemos. Mas, pelo menos, a intenção existe. O uso desta construção põe, porém, alguns problemas. Não na intenção, mas na conjugação. É um verbinho traiçoeiro o "haver", irregular já de si e ainda por cima de preposição às costas, tipo estudante de mochila. E nós lá vamos embatendo nele, como na estudantada em autocarros apinhados.

E afinal é assim: eu hei-de, tu hás-de, ele há-de, nós havemos de (vá-se lá saber porque não há hífen neste caso), eles hão-de. É assim e nada tem a ver com coisas arrepiantes como o "eles hadem vir…", ou o "depois hades contar-me todas as novidades…". É que o que se conjuga, em qualquer língua, são os verbos e nunca as preposições. Neste caso, o verbo é "haver". O "de" é mera preposição. Assim, hadem e hades são realidades obtusas. E, além do mais, dadas a confusões. Se hadem é coisa que não existe em português (diz-se "hão-de" e nunca "hadem"), quando se chega ao "hades", já é diferente. Existir, existe. Com o mesmo som, mas com maiúscula. O Hades. Só que nada tem de gramatical. É apenas o reino dos mortos, o nome do inferno, na mitologia grega. E também o nome do deus que reina nesse lugar de morte.

É pois largamente preferível dizermos a um amigo "depois, hás-de contar-me todas as novidades", do que pronunciar o tétrico e infernal "hades contar-me…". Por um lado, porque "hás-de" é a maneira correcta de falar. E por outro, porque apesar de o Hades estar cheio de boas intenções, o amigo pode não achar graça.

 

E.F.

Para dar cabo ou conta de nós

Por entre as glórias cantadas e apregoadas do nosso passado nacional, a dobragem de cabos sempre foi daquelas questões de honra a recordar e a evocar. Quanto mais não fosse, em situações de algum tipo de salão, para sublinhar o conhecimento da história pátria, mesmo que — ou sobretudo se — mais nenhum houvesse. Assim, nomes e cronologia eram ostentados a título de orgulho pessoal. Logo, de Lagos e com direito a registo no guiness por ter sido o primeiro, Gil Eanes e o Cabo Bojador. Depois outros, alguns com certo pendor a S. João Baptista, dados ao renomear de geografias velhas, como Bartolomeu Dias que, uma vez ultrapassadas as tormentas, resolveu dar o caso por pequeno e passou a chamar ao Cabo o da Boa Esperança. Mas chega de exemplos.

Há, no entanto, a considerar que semelhante obstinação em dobrar cabos acabou por se voltar contra nós. E com a vocação marítima parcialmente esquecida, as coisas passaram para um registo mais firme. De pés na terra. Talvez por isso, entre nós, e apesar de uma herança histórica, que tanto se reclama como país de marinheiros, haja ainda tanta gente a falar das cordas com que se amarram barcos, desconhecendo afinal, que todas as amarrações são feitas com cabos (ainda que de natureza diversa da dos citados acima), já que a bordo, de acordo com a gíria naval, apenas há três cordas. A saber: a corda do sino, a corda do relógio, e acorda que está na hora.

Já se vê, portanto, que os cabos, por muito dobrados e bem passados que estejam, ainda são capazes de ser o cabo dos trabalhos. Sobretudo quando — quiçá por vingança de tão específico desconhecimento vocabular — nos apanham pela traiçoeira via da gramática. Descontraídos e sem temer monstros, tempestades e marés vivas, vamos alegremente caindo na armadilha. E assim é ouvir o pessoal a afirmar com descontração e bonomia:

Ó amigo, chegue-se pra lá que eu assim não cabo!

Ou então:

Vês como emagreci? Já cabo outra vez nesta roupa!

E etc., etc., etc.

É certo que antigamente — quando ainda se usavam as mulheres gorduchas — às infelizes às quais calhava um par de pernas delgadas, logo se fazia ouvir a piada de não poder passar por uma certa cidade do Norte senão ainda aí lhes ficavam com elas para cabos de facas. Porém, no “eu cabo” acima referido não há cabo de faca, cabo eléctrico, cabo de mar ou cabo de esquadra que lhes valha. Nem gramática que nos salve. Porque cabo, como forma verbal do Presente do Indicativo, é coisa que não existe em português. O que existe, isso sim, é caibo.

E não vale a pena fazer de conta que não se ouviu ou que se pode disfarçar. É que depois há toda uma série de outras situações que saem directamente desta. Por exemplo, no Presente do Conjuntivo. E, desta vez, por regra da língua, espalhando-se generosa e democraticamente por todas as pessoas da conjugação: para que eu caiba, para que tu caibas, para que ele caiba, para que nós caibamos, para que vós caibais, para que eles caibam

Também não vale a pena aquele triste argumento de que assim não soa bem. A gramática não se incomoda com o domínio dos sons. A menos que esse domínio se chame fonética — país com regras próprias, que não vêm agora ao caso.

Assim sendo, mesmo não soando bem aos menos atentos ou acostumados, paciência. A língua tem manias que as nossas manias tantas vezes desconhecem. Por isso, deixemos lá as estranhezas. E deixemos os cabos onde eles pertencem. Ou seja — e sem desprimor para as esquadras — deixemo-los, de preferência, no mar. Entre barcos e marés, lugares poéticos onde as únicas cordas são as que já sabemos. Para que todos caibamos melhor nesta língua de tantos amores e rumores.

E.F.

Xis, ou o lugar do mistério

Em termos de pronúncia, o português não é uma língua óbvia. É verdade que não chega às confusões do inglês, mas, ainda assim, certas letras nossas teimam em guardar mistérios que desnorteiam alguns dos que aprendem o nosso idioma como estrangeiro.

As vogais estão no grupo dos quebra-cabeças, com a sua pronúncia nem sempre evidente. Se discorda, leia em voz alta: eu como, tu comes, ele come, nós comemos, eles comem… E: eu bebo, tu bebes, ele bebe, nós bebemos, eles bebem… e depois tente arranjar uma explicação para todas as variantes das vogais aqui salientadas.

Com as consoantes, o caso muda de figura, já que há regras a indicar o caminho, em quase todas as situações. Porém, não poderia faltar uma complicaçãozinha.

O Xis, por exemplo, o tal que nos mapas marca o sítio, na vida real raramente aparece como elemento clarificador. Que o digam os matemáticos ou todos aqueles que já alguma vez na vida se confrontaram com equações. Também nós nos podemos queixar dos trabalhos a que o Xis nos obriga, caindo em situações desagradáveis, pronunciando obtusamente a misteriosa letra.

À primeira vista, a culpa não nos cabe. Porque é que a escorregadia consoante havia de ter cinco variantes fonéticas e, ainda por cima, passar sem o apoio de umas pequenas e claras regras para nos facilitar a vida?

Infelizmente, o caso é mesmo assim. Regras absolutas e inequívocas, não há. Clareza também não. Vejamos: o Xis pode ter o som de ch como em xis, xadrez, Xabregas, xaile, bruxa, México; o de ç como em próximo, trouxe; o de s como em exposição, sexta; o de z como em exemplo, exame, exacto, êxito; e, finalmente, o de cs como em fixar, anexar, sexual, tóxico, intoxicação, intoxicado…

Os primeiros casos têm provado não causar dúvida. Todavia, a coisa complica-se quando chegamos aos últimos. E se ainda não chegámos ao ponto de dizer ou ouvir falar em educação "sechual", já o mesmo não acontece quanto a toda a família dos "tócsicos", rapidamente transpostos para a genealogia dos tós e dos chicos. Deste modo, são mais que muitos os acidentes que provocam "intochicações"; pessoas "intochicadas" que deram entrada em hospitais, bem como avisos contra produtos "tóchicos".

O mais grave destas "intochicações" é que muitíssima gente pensa ser assim mesmo que se diz. Há até quem sustente versões combinadas e afirme a obrigatoriedade de se dizer “tócsico” de braço dado com a possibilidade do “intochicado” e da “intochicação”. Não haver uma sinaléctica evidente para as confusões do Xis é uma coisa; atribuir-lhe costas largas a este ponto já é abuso de confiança. Por muitos mistérios que a nossa língua comporte, tudo tem limites. Para que a confusão não se instaurasse mais do que o considerado absolutamente indispensável, criaram-se os dicionários. Ao contrário do que se poderia pensar, não são particularmente difíceis de encontrar. Existem à venda variadíssimas possibilidades de esclarecimento sob a forma de uma agradável pluralidade de edições. Manuseando um desses exemplares, lá encontraremos as respostas às nossas maiores inquietações no domínio fonético. E, entre esses preciosos esclarecimentos, lá está anotada a correcta pronúncia do Xis. E sempre que toma os sons de "cs" lá surge a informação. Não se poderá pois desculpar o erro acusando a falta de meios.

Com esses utensílios tão práticos, o Xis passa a integrar uma “simbologia” de opostos. Oscilando entre os segredos das histórias, a afirmação de Indiana Jones aos alunos de que na vida real ele nunca assinala o lugar, e a fácil descoberta de que, no fim de contas, é um mistério que facilmente se esclarece. Como muito bem sabem os matemáticos.

 E.F.