segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Festejar e programar

Depois de anos de descaso e abandono, depois da ameaça da extinção, o Museu de Arte Popular parece ter sido, finalmente, salvo. Pelo menos, a avaliar pelas avisadas palavras da Ministra da Cultura.

Para quem andou, durante meses a fio, a lutar pela sobrevivência deste projecto foi, seguramente, uma grande vitória. Do ponto de vista do observador interessado, a vitória — ainda que por interpostas pessoas — não foi menor. Fica, entre outras coisas, a lição de que é possível conseguir resultados desde que se lute por eles. E é nesse sentido que venho escrever hoje estas notas.

No sábado 20 de Junho, após o último debate em frente ao museu, fiquei, sobretudo, com vontade de poder fazer mais. De poder contribuir um pouco mais não apenas na defesa do museu, para impedir a sua destruição e substituição pelo tal museu da língua, como sobretudo para a sua concretização enquanto MAP.

Depois de sair do debate ainda fiquei com amigos numa continuação de troca de ideias e continuei a pensar no assunto. Como investigadora da história dos museus públicos em Portugal, parece-me que, tristemente, a história se repete, se adia, mas nunca se cumpre. E provavelmente por duas razões principais: o eterno descaso do Estado — que tutela mas não gere — e o nosso enquanto cidadãos. Na verdade, como em tudo, também no que à cultura diz respeito continuamos a criticar muito e a fazer muito pouco. Neste aspecto, o MAP motivou como poucos a convergência de esforços de um grupo de cidadãos que — estou convicta —, à parte os méritos do raciocínio informado e culto da actual Ministra levou a bom porto a decisão de parar o disparate absoluto que era o projecto do Museu da Língua naquele local.

No entanto, creio que, no geral, continuam a faltar projectos que possam manter a concorrência e a competência (e competitividade) dos museus a funcionar de modo proveitoso para todos. No caso particular do MAP, agora salvo, espero que a imaginação seja posta em campo para manter este salvamento e não apenas para adiar o problema.

O que quero dizer com isto é que, salvo raras excepções, os museus em Portugal têm mostrado escassa capacidade de se vender. Ou seja: de se propor ao público como serviço. Nessa falta de noção da realidade, falham na sua missão mais mediática e depois na intrínseca, já que não conseguindo chamar público (não conseguindo, por isso, manter e aumentar o seu papel como divulgadores de cultura) falharão, mais tarde ou mais cedo, na sua missão de preservação da cultura (como conseguir os meios para se manter?).

Assim sendo, penso sinceramente que está na altura de pensar os museus como serviços públicos e, por isso mesmo, como facilitadores de experiências diversas. Para tanto, o museu tem de se pensar como espaço multifacetado, em que a partilha do saber é feita de modos vários mas sempre inteligentes, lúdicos e diversificados.


Nesse quente dia de Junho, em frente ao Museu, a Professora Raquel Henriques da Silva lançava um repto provocatório ao afirmar que já que o Estado se queria demitir, que se demitisse de vez e que, nesse sentido, desse espaço a outros. Na sequência, propunha como gestora para esse espaço a Catarina Portas. Concluía que muitos poderiam criticar esta proposta mas que lhe parecia viável.

Devo dizer que concordei completamente. Na realidade, a proposta (que me pareceu desde logo simples, limpa e viável) de pôr a Catarina Portas à frente de um projecto de gestão do Museu, tem toda a lógica por se tratar de uma jovem empresária, com claras apetências culturais, que já deu provas de saber gerir. O que — convenhamos — é muito mais do que muitos directores de museus portugueses (com extensos pergaminhos intelectuais mas fraca noção de realidade) se podem gabar de ser.

De qualquer modo, seja a Catarina Portas ou outra pessoa, o que importaria para este espaço seria, de facto, torná-lo num lugar apetecível. O que, tendo em conta o contexto de inserção urbana, não é difícil. De facto, tratando-se de um espaço de pequenas dimensões, mas estrategicamente colocado naquela que pode muito bem vir a ser a nossa região lisboeta equivalente ao triângulo de ouro de Madrid, tem todas as condições (ainda mais numa época de crise) para poder ser gerido com inteligência, criatividade e arrojo, sem que ainda por cima sejam necessários orçamentos milionários.

No entanto, isso não basta. Mas uma equipa empenhada e inovadora poderia tornar este museu nesse espaço apelativo. Vejamos: porque não fazer um projecto (saído do concurso de ideias do grupo que estava à mesa e das jovens promotoras do blog que manteve este sonho em estado de alerta, por exemplo — no que eu puder, enquanto cidadã e investigadora, estou desde já disponível para ajudar, também) científico, comercial e turístico para o museu (ou seja, dotado de um claro empreendorismo cultural, algo de que hoje tanto se fala como gerador de riqueza, como tão bem tem defendido o Richard Florida, entre outros) e convidar como parceiros mecenas várias entidades não concorrentes (ou mesmo concorrentes desde que "aconselhadas" mesmo que compulsivamente pela Administração do Porto de Lisboa)?

Porque não avançar com a proposta referida nesse dia 20, mesmo que em maquete, do Arquitecto Victor Mestre, e com um projecto científico com contornos concretos, incluindo uma equipa disponível para organizar exposições temporárias, um catálogo de publicações, organização de documentação, etc., mais o tal projecto de gestão (já com alguns mecenas contactados e disponíveis)? Porque não apresentar uma "alternativa ao aeroporto"?

O optimismo que todos manifestaram nesse dia 20 de Junho deu frutos, como se vê. Pelo menos, travou-se a disparatada ideia do Museu da Língua e a irresponsável ideia da aniquilação deste projecto único (diferenciação a ser usada positivamente num mundo cada vez mais sedento de projectos únicos!). Como optimista por natureza, o optimismo parece-me a única via possível. Mas, para que ele não se transforme numa alucinação (como bem Lembra o António Câmara), é necessário concretizar de modo pragmático. Citando ainda José Gil, o pragmatismo é o que falta ao sonho em Portugal; e convém não ser esquecido sob pena de minar tudo à partida.

Por isso, faço um apelo: o grupo que se propuser à reanimação do MAP que avance com um projecto concreto, atrevido, interessante e capaz de boa saúde. Que não se esqueça de seduzir, além do público interno, os agentes turísticos, os investigadores e os diletantes. A arte popular é atractiva por si. Não a percam com discursos fechados. E, sobretudo, estudem-na, sim, mas divulguem-na bem. A comunicação hoje é determinante. Para terminar, só um lembrete histórico: em 1882, organizou-se em Portugal a primeira grande exposição de arte. Chamou-se "Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola". Teve, pela primeira vez em Portugal, luz eléctrica e outras atracções. Recebeu 100.000 visitantes e teve eco na imprensa de vários países da Europa. Mas, ainda assim, menos do que poderia ter tido. Como escreveu então um enviado francês: "os portugueses sabem fazer, mas não sabem divulgar." Que o erro sirva para não ser repetido.





domingo, 6 de dezembro de 2009

A avaliação de professores

Depois de mais de um ano em que os problemas da educação se resumiram a braços de ferro, àcerca da avaliação dos professores e outros aspectos específicos da profissão, entre governo e sindicatos, parece que tudo vai recomeçar. O que é extraordinário nisto é que, depois de 30 anos, se permitiu que os que trabalham no sistema educativo o moldassem à medida dos seus interesses e a discussão sobre educação continua centrada nos problemas específicos duma profissão. Em vez de estarmos a debater como vamos dar a volta a um sistema que produziu resultados medíocres e que está a piorar, como reconhecem os especialistas, somos bombardeados com notícias sobre problemas técnicos que não temos competência para julgar e que nos interessam tanto como os problemas da minha carreira (ou de qualquer carreira) interessam aos professores. O que devia mobilizar o governo os media e a opinião pública era como mudar um sistema de ensino que vem do século XIX, feito à medida da revolução industrial, e que se mantém basicamente igual no século XXI. Em vez de formarmos alunos para trabalhar em fábricas, devíamos ter em conta o que vai ser preciso no presente e no futuro próximo. Questões como a criatividade, o autoconhecimento, o empreendedorismo, a excelência, a ligação ao mundo do trabalho, a que a escola actual não só não dá resposta, como muitas vezes inibe, deviam estar no centro de todas as atenções. Vale a pena conhecer e discutir as opiniões de Nuno Crato, António Câmara ou Ken Robinson sobre educação. Não vale a pena e já não tenho paciência para mais notícias de braços de ferro entre a Fenprof e o governo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Irmão rico, irmão pobre


O verbo haver tem uma história digna de romance. Até pode ser de cordel, mas ainda assim, romance. Equivalente — embora com menos enredo, é certo — do homem rico, homem pobre. No caso, através de dois usos distintos, um literário, outro vulgar: o primeiro com o sentido de ter, e o outro com o de existir.

No primeiro caso, com o sentido de ter, é usado nos tempos compostos dos verbos, como, por exemplo: quando ela chegou à escola já os colegas haviam chegado. Claro que é muito mais frequente (especialmente ao falar) dizer tinham chegado do que haviam chegado. Mas ambos os verbos estão correctos e em ambos os casos o verbo auxiliar (ter ou haver) é conjugado de acordo com o número do sujeito (ele havia/tinha chegado; eles haviam/tinham chegado).

O raro uso oral do verbo haver, como sinónimo de ter, não deixou, porém, de lhe trazer confusões na vida da versão homem pobre, ou seja, na sua vulgaríssima utilização de existência.

É assim que este parente pobre vai aparecendo, com cada vez maior frequência, conjugado nas suas formas plurais. Coisas do género: naquele filme haviam muitos actores bons. Ou: houveram muitas cheias no Inverno passado. Ou ainda: hão-de haver muitas pessoas na praia este fim-de-semana. E por aí fora. Ora é aqui que reside o problema.

O verbo haver, enquanto afirmação de existência, não funciona no plural. Por uma razão simples: esse plural não existe. Não há. Em caso de cepticismo aconselha-se a consulta a um dicionário de verbos. Mas talvez não seja necessário para acabar com essa dúvida. Pense simplesmente o leitor incrédulo: quando usa o verbo no presente, para indicar a presença de muitas pessoas numa sala, diz " muitas pessoas na sala" ou "hão muitas pessoas na sala"? É de crer que a segunda hipótese esteja afastada. Então porque insistirá em afirmar que "haviam muitas pessoas" em vez do correcto "havia"? Ou "houveram" em vez do correcto "houve"? Ou "hão-de haver" ou "haverão", em ver dos correctos "-de haver" e "haverá"?

Não há pois margens para dúvidas. Haviam, houveram, haverão e outros que tais são manifestações de existência — ou de não-existência, aliás, — a evitar a todo o custo. Como as más companhias.

Compreende-se facilmente a confusão, devido ao uso literário do verbo enquanto auxiliar, nos tempos compostos — aí sim, como já vimos, devidamente conjugado em singulares e plurais, de acordo com o sujeito da frase. Quanto ao mais, também já vimos: haver, enquanto sinónimo de existir, é sempre absolutamente singular. Há, houve, havia, tinha havido, houvera, vai haver, haverá, haveria, haja, houvesse, houver, tenha havido, tivesse havido, tiver havido, havendo, havido. Ou seja: em todos os tempos, passados, presentes e futuros, sejam eles simples ou compostos, enquanto verbo independente (e não enquanto auxiliar de outros, com o sentido de ter), o verbo haver é sempre singular.

Podemos mesmo dizer que é único. Ou original. O que quisermos. Desde que, de hoje para o futuro, não ignore o leitor essa especificidade verbal, pontapeando a língua e ofendendo o irmão pobre que, lá por não ser literário, não merece destrato.

Emília Ferreira

Aonde vais rio que eu canto

Todos temos presente aquela célebre história que envolve o famigerado Bocage. Passando ele uma noite na rua do Crucifixo, após as 22h00, foi interpelado por um polícia do Intendente que, de arma em punho, lhe perguntou em tom intimidador:

— Quem és, donde vens e para onde vais?

Ao que ele respondeu:

— Sou o poeta Bocage, venho do café Nicola e vou para o outro mundo se disparas a pistola…

Não traz esta história o propósito de recordar outros episódios mais ou menos interessantes da vida do poeta, mas simplesmente o de lembrar a existência de um advérbio que vem sendo muito ignorado nos últimos tempos. Trata-se do "onde", cujas funções, já de sim importantes e pesadas, lhe têm sido alargadas sem que a sua tradicional ajuda preposicional lhe continue a ser prestada. Em época de crise, os despedimentos aumentam, é sabido, mas daí a despedir, sem justa causa, uma preposição, já é de mais.

Atente-se, então.

Onde indica o lugar em que; no qual lugar. Sabemos que isso não traz complicações especiais, embora momentos haja, na vida de cada um, em que não se sabe muito bem quem se é, quanto mais onde se está. Mas não estamos aqui para falar disso. Voltemos atrás: onde refere o lugar em que. Ou seja: o lugar em que se está. Mas é sabido que todo o mundo é composto de mudança, como dizia Camões, e que parar é morrer — como diz o povo. Ora, não apenas para concordar com o poeta mas porque a vida é mesmo assim, é preciso que as pessoas se movam. E como todos nós gostamos de contar histórias, é preciso também que depois tenhamos utensílios linguísticos ao dispor. Foi assim que o advérbio onde se muniu de ajudas, quando teve de começar a trabalhar com verbos de movimento, como o ir e o vir. E essas ajudas não são de somenos. Que o digam as companhias de transportes.

Foi assim que o dito advérbio se rodeou das preposições de, para e a. Com a preposição de resolveu trabalhar em conjunto com o verbo vir. Com as outras duas criou uma sociedade com o verbo ir. Desse modo conseguiu prosperar e passou a ser mais que um simples advérbio parado no mesmo sítio, sem ir a lugar algum.

Deixou de ser simplesmente o:

— Onde estás agora?

Para passar a ser mais curioso (nalguns casos, até bisbilhoteiro) e ficar a saber mais:

De onde (ou donde) vens?

E:

Aonde vais?

Ou, em caso de maior demora, ou simples indicação de direcção:

Para onde vais?

Este trabalho de grupo não é recente. Existe há muito, suspeita-se que desde o tempo em que o latim se formou, continuando gloriosa carreira ainda viçosa ao tempo de Bocage, como pudemos ver acima, pela referida história.

Claro está que, ao longo dos séculos, muita coisa tem mudado na língua. E algumas formas menos correctas têm surgido no falar. Uma delas, a criativa mas inexpressiva adonde, que nos seus dois movimentos contrários (um de e outro a) acaba por deixar o pobre onde paralisado, sem poder dizer nada nem ir a lado algum. Além disso, e como uma desgraça nunca vem só, essa forma ignara e atrevida logrou amedrontar muita gente que, no receio de cair em asneira, decidiu tirar a preposição a de perto do advérbio onde. E foi assim que surgiu a moda do:

— Onde vais?

Esta moda espalhou-se como a peste. Teve mesmo o seu hino. Lembram-se do "Onde vais rio que eu canto"? Enfim, os mais velhos talvez. Mas adiante! Depois das canções, avançou terreno. Chegou à comunicação social, até à literatura. E instalou-se com ares de sapiência. Ao ponto de hoje se duvidar do bem falar daqueles que insistem na forma correcta. Desses “excêntricos” se diria serem dotados de um fervor quase clássico. De facto, quando um desses espécimes raros põe no ar um certíssimo "aonde vais?" logo uma multidão de olhares contristados o brindam com uma muda acusação de incultura. Numa onda assumidamente quixotesca, portanto, venho aqui manifestar solidariedade para com esses valentes que ousam ainda apostar na correcção gramatical. Recapitulando.

Onde vais, infelizmente, não significa nada. Não se vai onde, vai-se a ou para. Portanto, teremos de inquirir: para onde vais? Ou: aonde vais? Pelo menos se nos quisermos referir ao movimento, e não ao meio de transporte. Nesse caso posso dizer que vou no comboio das sete, mas também não estarei a responder onde vou, mas como vou, em que meio de transporte. E aí teremos nova preposição: em. Mas aí a história já será outra. Talvez noutro dia. Noutro lugar onde.

Emília Ferreira

O direito à frivolidade

Vem este post na sequência de um comentário benévolo de uma amiga, por ocasião da minha reentrada em cena no Hipericão. Nem de propósito, essa reentrada tomava como pretexto os dislates da Maitê, mas defendendo (ainda que de passagem) o princípio de que o riso é sinal de inteligência e não de tolaria.
Sempre me desgostaram os bem-pensantes que mantêm, com segurança idiota (também tenho direito ao meu ponto de vista), que o riso é mais constante na boca dos tolos. Ao contrário desses ingénuos, estou com Bergson quando afirma que numa sociedade de inteligências puras poderíamos deixar de chorar, mas seguramente não deixaríamos de rir. Mas a que vem esta conversa sobre o riso, se o comentário da amiga se limitava a saudar o meu regresso ao Hipericão, espaço no qual, ao contrário do Facebook, eu (tento) dar parte do melhor de mim, em vez das frivolidades que por lá disparo? Justamente para lembrar esse direito inalienável do disparate. Aliás, convém aqui relembrar que essa é uma das funções do fb: o aligeiramento do comentário, a boca dita de passagem, a brincadeira. Numa palavra, a leveza própria de uma rede social que não tem pretensões a mais do que isso. Há quem por lá ande à procura de amizade, outros de amor, outros de sexo, outros de cusquice, outros de relações profissionais em rede. Este último é o meu caso. Mas por lá andam também várias pessoas com as quais mantenho há anos relações de amizade especialmente quentinhas. E outras que conheci no meio das linhas do fb e com as quais troco não mais do que frivolidades amigáveis. Na melhor das hipóteses, pequenas polémicas. E pequenas porque o próprio espaço disponível para comentários tem um número muito reduzido de caracteres. Por muito que se tenha poder de síntese, este raramente aparece sem trabalho e muito menos no improviso de uma observação feita de passagem...
Em defesa deste argumento — o direito à frivolidade — devo dizer que já em miúda me irritavam as pessoas que sentiam a necessidade de compor a toda a hora uma imagem contida e irrepreensível de intelectualidade. Bem-pensantes 24 sobre 24 horas, nunca davam descanso à imagem; como alguns são incapazes de se apresentar sem gravata ou de andar descalços. Quando fui estudante de Filosofia, uma das minhas maiores decepções foi o grau de vaidade intelectual de muitos dos meus colegas, longe do que eu pensara dever ser um curso de Filosofia assente nos princípios socráticos do auto-conhecimento e da célebre máxima "só sei que nada sei". A pica que essa ignorância me dava era exactamente a necessidade de a ultrapassar, ainda que sabendo que ela sairia sempre vencedora. Nunca me deu para fazer de conta que sabia tudo, que era super-séria e super-contida e super-qualquer coisa mais. E, por isso mesmo, como uma certa personagem da Anaïs Nin que tomava banhos de lua sobretudo por lhe terem dito que era perigoso, também eu cultivei ainda mais o riso em ambientes de hiper-controle. Devo dizer que, até hoje, nada me dá mais vontade de dizer disparates do que ambientes de excessiva (deslocada) solenidade.
Sei muito bem os custos que isso comporta. Há sempre quem esteja pronto para corroborar o velho mito do "muito riso pouco siso". Mas já passei dos 40. Já estou quase nos 50. Não quero saber. Mas, ainda assim, julgo que devo ainda um esclarecimento: todos nós precisamos de escapes. Eu não fumo, não bebo (ou o que bebo é tão insignificante que não conta), mas rio. Rio com vontade e qualquer garrafa de água do Luso ou do Fastio ou de Monchique ou da torneira é combustível suficiente para isso. Rio e passo e digo disparates. Ou escrevo-os. No fb. Que é um espaço possível para isso.
Alguns poderão perguntar: pode uma escritora dar-se a esse luxo? Respondo-lhes: na vida, sim. Nos livros, depende. Porque os livros de um escritor, como já disse Proust, são melhores do que os escritores. Se o contrário acontecer, se o escritor for melhor do que o livro, é porque o seu livro não é um livro. Tinha razão, o Proust. Porque na vida, somos. Com falhas, com enxaquecas, com insónias, com dores de barriga, com o que seja. Nos livros, transcendemo-nos. Porque do pior de nós projectamos algo de diferente. E limamos e limamos e limamos. Até se tornar o mais próximo possível da gema.
Fora dos livros, fora das teses e das críticas de arte, o escritor é tão humano como qualquer outro. Concedamos-lhe esse direito. O direito à frivolidade. Para que ele não tenha de a carregar intacta quando chegar a hora mais aguda.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A cultura e a educação a quem as cultiva

Está para breve o novo governo. José Sócrates mantém alguns ministros mas guarda algumas surpresas. Temendo as más surpresas, venho lançar um apelo directo do fígado e do coração. E, sobretudo, da razão:
Por favor, Sr. Primeiro Ministro, não nos surpreenda mal na Cultura nem na Educação. Nesta, já basta de dislates. Já não temos mais crédito para pagar tanta asneira. Para custear o que vai ser o dívida de gerações e oportunidades perdidas. E na outra, tão pouco cultivada, que haja mais do que belas melenas. Alguém que perceba aquilo que outros já compreenderam há décadas: que a cultura gera riqueza. Não deixem de investir na que já se sabe ser a nova indústria promissora, a fonte de riqueza e valorização do século XXI. Vá lá! Sabemos que é difícil escolher bem. Mas custa bem menos do que escolher mal. Pelo menos, a longo prazo. Uma prendinha, por favor. Ministros com visão. Vá lá! Estamos precisados.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O riso

Tradicionalmente, o riso é mal considerado. Diz-se, popularmente, que "muito riso, pouco siso". Não é preciso acrescentar mais nada. Todos nós sabemos que quem ri muito é, por regra, desconsiderado do grupo dos bem pensantes. Mas, actualmente também sabemos que rir é sinal de compreensão. De inteligência. Rimos de alguém ou de alguma coisa porque notamos no objecto do nosso interesse momentâneo um desacerto qualquer. O riso exige capacidade de análise, conhecimento, envolvimento. É, por isso, complexo. Mais complexo do que as lágrimas. Qualquer actor confirmará que é mais difícil fazer rir do que chorar.
Hoje em dia até sabemos que rir limpa o fígado (é assim a modos que um hipericão sem o gosto peculiar da erva). Aliás, já os árabes clássicos diziam que, para viver até aos 100 anos, era necessário rir "trinta vezes ao dia". Excelente exercício aeróbico, há quem o defenda e pratique como profiláctico da asma (embora, como asmática, eu saiba como é difícil rir no meio de uma crise...) e quem o indique como o mais eficaz dos processos para reafirmar os abdominais. Só vantagens, portanto.
Ainda assim, e porque o humor é complexo, há risos e risos. Não falo dos risos amarelos, dos escarninhos, do riso que se faz só com os dentes sem que nada aflore aos olhos. Falo, simplesmente, do clic que nos leva a soltar uma gargalhada. Diferenças culturais estabelecem fronteiras por vezes intransponíveis. Também todos sabemos disso. Mas sabemos ainda mais: apesar de haver muitos tipos de humor, há fundamentalmente dois grandes grupos. O humor segregador (o das piadas fáceis mas necessariamente rasteiras e pouco inteligentes - racistas, sexistas, xenófobas e outros mimos...) e o agregador. O agregador é o mais difícil. Porque parte de si (do riso sobre si mesmo e, depois, para os outros, como iguais... mesmo que risíveis nas suas idiossincrasias) para unir (para reflectir) e não para humilhar. Humilhar é fácil. Qualquer imbecil o pode fazer (por isso fiz o meu exercício de ontem, generalizando sobre os brasileiros, para provar esse ponto de vista). Não é, por isso mesmo, motivo de orgulho mas, em tempos de facilitação de conteúdos, compreende-se que seja o que mais vende em televisão, sobretudo em programas de grandes e pouco exigentes audiências como aquele para o qual a Maitê fez a idiota farsa da turista moderna e ultrajada.
Repito: o que ela fez é fácil. Qualquer idiota o faria - como se comprovou. Difícil é fazer o que fazem os verdadeiros profissionais do riso. Como fazem os Gato Fedorento. Os Contemporâneos. As Produções Fictícias. E mais alguns. Como os alentejanos em geral. Provavelmente, os portugueses com maior capacidade de rir de si mesmos. Mas isso, naturalmente, não está ao alcance de todos. E, naturalmente, convém não confundir o que é rir de si mesmo com outra coisa como gozar com os outros através do achincalhamento.
Isto tudo para acrescentar ao meu irritado post de ontem que uma coisa é nós dizermos mal de Portugal, outra, muito diferente, é uma idiota qualquer (venha ela de onde vier), ignorante e delambida, vir dizer aleivosias sobre nós.
Vejo muita gente espantada com o vídeo de Maité Proença. Só quem não teve no Brasil uma relação mais próxima do que um superficial relacionamento de turista, não apanhou com um chorrilho de anedotas ofensivas sobre portugueses, que demonstram, além duma enorme falta de educação, o que grande parte dos brasileiros pensa sobre nós. A mim não é a falta de respeito, a ignorância, o cinismo imbecil chico-esperto que eles demonstram que me choca. A mim choca-me que nós, um povo com quase mil anos de história e de cultura, sejamos tão permeáveis a tanta porcaria que eles diariamente nos impingem, sem qualquer contrapartida.

Artur Costa

A má educação e a cobardia

Maité Proença, uma actriz brasileira que, como tantos colegas e compatriotas seus, tem sido muito acarinhada pelo povo português, resolveu fazer uma brincadeira. Resolveu vir para Portugal fazer piadas sobre os portugueses, o seu património e as suas falhas imensas. Disso se riu muito e com ela riram as colegas do programa de televisão para o qual foram filmadas imagens que tanto irritaram os visados. Faço parte desse grupo. Agora, uma Maité oportunista vem dizer que era tudo uma brincadeira. Não precisava de o fazer. Uma ofensa reiterada não é menos ofensa por isso. Já nos tinha chamado estúpidos. Não precisava de o fazer duas vezes.
Vamos agora explicar.
Não, Maité. Insulto não é piada. Racismo não é piada. Se não, vejamos: coloquemos as coisas ao contrário. Todos os brasileiros são estúpidos, feios e ignorantes. E não sabem falar com correcção o português que, quando falado pelos seus criadores, nem é entendido no Brasil, onde muitos dos nativos acreditam piamente falar uma língua que eles próprios inventaram. Aliás, nem é preciso ir só ao inacreditável nível de analfabetismo e miséria da população que vive abaixo do nível da pobreza mais vil e gasta o que tem e o que não tem para sambar no Carnaval. Ou que trata mais do corpo que do espírito, como se percebe também pela carinha laroca da Proença que nunca cuidou de cultivar mais o recheio da cabecinha. Basta ouvir colegas seus das novelas a usar mal o futuro do conjuntivo do verbo ver, por exemplo. (Não, quiridá, a gramátchica, por inquanto, ainda é iguau...) Como basta ouvir os dislates que a loira diz para perceber que ela nunca pôs em contacto os dois neurónios.
Tá vendo como é fáciu, quiridá?
Agora uma perguntinha: porque insistem tanto os brasileiros em insultar os portugueses, à custa da imigração que lhes levou os manéis padeiros? Será que fazem o mesmo em relação aos imigrantes itialianos, aos japoneses e a tantos outros que para lá foram no princípio do século XX à procura de melhor vida, exactamente como eles hoje fazem com Portugal, este país de merda no qual estes supostos bem pensantes vêm ganhar dinheiro e cuspir na sopa? Qual é o problema que têm connosco? À parte explicações pseudo-freudianas, para as quais me estou nas tintas, sobretudo neste momento, há um lado de irritação que as desculpas da loirinha não apagam. Apetece-me dizer simplesmente que vá lá ser mal educada na terra dela, ignorante na terra dela e cobarde na terra dela.
Aqui já temos muitos, será certo. Mas não tão arrogantes. Talvez por apesar de sermos muito manéis padeiros não sermos assim tão ignorantes.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Santana Lopes não cessa de nos surpreender. Primeiro quer mais túneis em Lisboa. Para agilizar (diz ele) o trânsito. Depois, afirma que pretende taxar os carros em Lisboa. Coitado do Santana Lopes. A lógica não passou por ali.

Por isso, aqui fica o último fôlego da minha campanha em último dia: também não quero o Santana Lopes na Câmara de Lisboa. Lisboa já tem desgraças suficientes.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

IADE, 40 anos

Diz-se que é aos 40 anos que se começa a viver. Talvez por ser uma idade de maior consciência. De mais dilatada e fecunda ambição. Mas, também por isso, de maior responsabilidade.
O IADE faz 40 anos. E deveríamos dar-lhe os parabéns pelo bom trabalho feito. Uma coisa, porém, tinha de vir estragar a festa.
No vídeo comemorativo destas 4 décadas de actividade, há frases estranhas: "IADE'S criar", "IADE'S imaginar". Etc. Confesso que, quando vi, fiquei com um ponto de interrogação em cima da cabeça. As frases não faziam qualquer sentido para mim e fiquei sobretudo perplexa com o papel do apóstrofo + s, tão british e tão inexistente em português.
"O que é que aquilo quer dizer? Que frases são estas?", perguntei eu a uma colega que estava a assistir à mesma projecção. E foi com um calafrio na espinha que a ouvi responder, sorrindo: "Então: é como quem diz "e hádes criar", "e hádes imaginar""...
Mais rápida que Orfeu, cai no Hades e de lá voltei a correr. Há-des??? Hádes??? Como forma verbal? Em brincadeira fonética num vídeo de uma escola criada pelo António Quadros?!!!
Isto é uma piada? A estupidez e a ignorância agora são graçola? Cumplicidade imbecil?
Depois, fui ao site da escola. Saí de lá novamente em choque. O português é mal tratado em várias linhas, em várias informações, estruturalmente desmerecido.
Como é possível?!

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O Descaramento

Em "Portugal Hoje, o Medo de Existir", José Gil falava de um fenómeno que muito nos devia afligir: o descaramento. O descaramento é, literalmente, o "não ter cara". Aquilo que tanto aflige tradicionalmente os orientais (perder a face), é coisa de somenos para muitos de nós. Esse fenómeno que, com frequência (se não sempre), roça a falta de carácter está tristemente disseminado entre nós. E grassa, sem graça nenhuma, na classe política. Um dos mais caricatos exemplos é Santana Lopes. Depois de todos os desaires, de todas as aleivosias, volta, com o maior descaramento, a candidatar-se à Câmara Municipal de Lisboa. E vem, ainda por cima, de túnel à tiracolo. Como se Lisboa ainda precisasse de mais buracos! Do que Lisboa precisa é de gente! De gente que a ame, a renove, a recrie. Não, seguramente, de um político sem projecto, apoiado por líderes que fingem uma conveniente amnésia e tentam agora convencer-nos de que o que o actual candidato fez no outro mandato foi maravilhoso, espantoso, fantástico. 
O que mais irrita nesta política descarada é a facilidade com que fazem de nós parvos. Espero que depois das eleições não nos provem que têm razão: de que somos mesmo parvos e voltamos a dar a outra face. 
Quantas faces precisará Lisboa de dar até se arruinar por completo?

terça-feira, 30 de junho de 2009

E a língua portuguesa, Senhor?


"Faz hoje 4 Anos

Tem dias que parece que o tempo se emaranhou nas coisas e nas pessoas.

Tem outros dias em que tudo parece ter ocorrido ontem.

Contudo há algo que o tempo tem os limites certos:

- Foram quatro anos bons de amizade, de solidariedade e de prazer de poder contar com o vosso

profissionalisno e apoio.

Em nome da Direcção o nosso muito obrigado."


Margarida Moreira

[Directora da DREN]



Enfim: já muita gente riu com estas palavras. Eu não consigo. A impunidade com que alguém, com responsabilidades na Educação, se dá ao luxo de não só pensar mal como de o demonstrar com tanta evidência, na sua língua natal, causa-me náuseas. Porque é que um palavrão cabeludo há-de ser mal visto e esta pouca vergonha há-de ser aceite? Uma última pergunta: como é que se nomeia gente desta? Se calhar, antes de ser nomeada, esteve sempre de boquinha fechada, não? 


domingo, 26 de abril de 2009

"Em resumo: ninguém sabia a quantas andava. Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos. Os governantes, os professores e o escol intelectual, cuidadosamente escolhidos entre as pessoas mais insignificantes da Cidade, pugnavam com denodo pela mumificação do Disparate de pernas para o ar. E ai daquele que não pronunciasse pelo menos dez asneiras por minuto. Ou não sujasse as grandes descobertas e empresas humanas (como a energia atómica ou os satélites, por exemplo) com teorias imbecis de amesquinhamento reles. Considerados moralmente mortos, os colegas tratavam logo de excluí-los, sem relutância nem remorsos, das respectivas academias e universidades. 
Esta estupidez, preceituada como uma das mais galhardas manifestações da alma da raça, cultivava-se desde a infância, com esmeros maternais. As escolas, onde os mestres se seleccionavam não pela ciência demonstrada mas pela maneira de trajar e de fazer o nó da gravata, incumbiam-se de torcer os meninos até à incapacidade perfeita. Ensinavam-lhes de propósito coisas sem significado, palavras vazias, matérias inoperantes, ideias cadavéricas, sempre com mais de duzentos anos, pelo menos, e que, conservadas em álcool, graças ao seu desuso em cabeças vivas serviam para simulações de sistemas geniais recentes.
Também se chamavam ursos aos raros estudiosos. E, por severa determinação legal, só os incompetentes comprovados, com mais de 80% de erros ortográficos nas provas escritas e total inépcia para acertar nas contas de dividir, podiam ocupar os cargos cimeiros da Cidade da Confusão.
Por isso, ouviam-se com frequência frases elogiosas desta género: «Fulano é um idiota chapado! Está apto a solucionar todos os problemas, sobretudo os insolúveis! O Poeta Tal é um imbecil de génio!»Etc., etc.
No meio desta trapalhada, em que tudo parecia desengonçar-se e fazer o pino, o pobre João Sem Medo esforçava-se por se manter imune ao contágio, repugnando-lhe aderir à lógica absurda de certos hábitos e cerimónias.
Assim, por exemplo: porque é que os confusionistas se sentavam sempre de costas voltadas para o palco a aplaudirem-se a si mesmos com delírio? Porque se reuniam em cabarets fúnebres para chorar em conjunto, ao passo que riam e contavam anedotas nos velórios dos enterros? Porque mandavam para os museus os quadros maus? Porque frequentavam as praias de casaca e colarinhos de goma (consoante prescrevia a lei), enquanto as mulheres passeavam pelas ruas com vestidos de noite e iam aos bailes de fato de banho? Porquê, quando os orfeões se alinhavam nos estrados, quem cantava era o público? Finalmente, porque é que os músicos das orquestras sinfónicas se instalavam nos palcos para escutarem com atenção religiosa os concertos de tosse dos espectadores, todos formados no Conservatório Nacional das Constipações Estéticas e Bronquites de Arte Aplicada?
As respostas a estas perguntas afiguravam-se tão precárias a João Sem Medo que, certa manhã, receoso de ficar com a cabeça do avesso, decidiu meter-se no primeiro comboio (mesmo com asas) e safar-se da Cidade da Confusão."

In FERREIRA, José Gomes — As Aventuras de João Sem Medo: Panfleto Mágico em Forma de Romance. Lisboa: Diabril Editora, 1973, p, 96-98.


O Meu Hipericão pretende ser um blog para partilha de figadeiras. Ir buscar elementos de consolo, nas figadeiras alheias, às Farpas ou aos Gatos, com mais de cem anos, já começa a ser de mais. Então, lembrei-me de recordar aqui o José Gomes Ferreira que escreveu e publicou a primeira versão desta estória em 1933, e a publicou em livro, pela primeira vez, em 1963, com reedição em 1973.

À parte alguns pormenores, penso que este romance continua dolorosamente actual. O que talvez nos devesse fazer pensar que mudar os governos não basta. Talvez porque já desde o tempo dos romanos se sabia que havia na Península [Ibérica] um povo que "nem se governava, nem se deixava governar". [Sim, éramos nós.]. 
Não é motivo de orgulho a persistência no erro. Se calhar, estaria na altura de pensarmos por nós, individualmente. Responsavelmente. Trinta e cinco anos depois do 25 de Abril falta cumprir-se Portugal. Falta lembrar que, para maior liberdade, maior responsabilidade. Porque de resto continua a estar muito actual também a realista frase do Almada. "Coragem, Portugueses: Só vos faltam as qualidades!"

Mas, à parte as figadeiras, tal como João Sem Medo, tenho um sonho: que este país deixe de ser território de choraquelogobebenses. Que deixemos de fazer as coisas ao contrário e esperemos que a lógica nos caia em cima por benesse divina. Ou mero acaso. O que vai dar ao mesmo.

Há por aí mais alguém que partilhe este sonho?









Sábado, 20 de Junho, depois das 16h00

Em frente ao Museu de Arte Popular. 
Boas ideias. Interessante debate. 
E agora?

MAP, 1

MAP, 1

MAP, 2

MAP, 2

MAP, 3

MAP, 3

Nova acção a favor do Museu de Arte Popular

Sábado, 20 de Junho, em frente ao museu, pelas 16h00. 
Não faltem!


[sobre as variantes do Hipericão ver 
http://cantinhodasaromaticas.blogspot.com/2008/06/hiperico-do-gers.html]

Um lembrete positivo

Um Michael Caine personificando um magnífico Alfred, pergunta a Bruce Wayne, sujo das chamas que deitaram abaixo a sua mansão: “Why do we fall, sir? So we can learn to pick ourselves up.”

Uma fala sábia de uma personagem cujo actor tem, na vida real, um lema magnífico: “Use the difficulty.”

Um lembrete maravilhoso nos dias difíceis de atravessar. Para quem quiser usar.

À laia de introdução

Começo hoje a publicar este breve glossário. Continuará por ordem alfabética, como convém a um bicho do género. Quaisquer acrescentos a letras entrarão também em cena pela mesma ordem.

Glossário de generalizações ou alguns parágrafos-guia para bem entender este país

A

Acentos — Fazem parte do corpo das palavras. Têm uma função. Não são elementos decorativos. Normalmente esquecidos pelos mesmos inventivos que depois põem bolas em cima dos ii.

Ambição — Juntamente com o optimismo, uma das forças que faz andar a humanidade. É o sentimento que nos faz querer mais, ultrapassar os obstáculos, desejar, sonhar. Para não nos lançar na selvajaria, deve ser temperada com escrúpulos. Em Portugal, é sempre vista como uma malfeitoria. Já assim era entendida no latim, que lançou esta maldição sobre o desejo. O que faz uma definição nefanda...

Antigamente — Advérbio de modo. Do modo correcto. Antigamente é que era bom. Tempo indefinido mas claramente definido no passado. O antigamente é sempre garantido. Os gregos chamavam-lhe a Idade do Ouro. Em Portugal é simplesmente antigamente. Vagamente depois do tempo em que os animais falavam e claramente antes de nos tornarmos adultos. Antigamente tudo sabia melhor. As pessoas eram mais simpáticas. Lia-se mais. Havia menos insegurança. E mais liberdade. Quando eu parar de rir, vou voltar à lista.

Ar — Aquilo que respiramos. Mas também aparência. Verosimilhança. Apesar de ninguém viver dele (com a excepção dos fazedores de leques e da indústria do ar condicionado), o ar condiciona a nossa vida. Faca de dois gumes. Porque ter ou dar(-se) ares (de alguma coisa) é algo a desejar e a temer. Exemplos: Fulano tem ar de parvo. Sicrano tem ar de boa pessoa. Fulana dá-se ares de estrela de cinema. Aquele dá ares de rico. Não precisamos de ir mais longe. O ar é tudo. Para quem não é, ar basta.

Artista — Jeitoso, habilidoso. Trafulha. Quando morto, é bestial; quando vivo, não passa, com sorte, de grande besta. Inapto e inerte. Equivalente a intelectual, mas sem a cabeça. Os antigos é que eram bons. Faziam um trabalho escorreito, bem feito, com claro saber do ofício. E que se percebia, que tinha mensagem. Os de agora não sabem fazer nada, só fazem coisas sem nexo para chatear o público. Nós. Porque é que aquilo é arte? Grandes artistas! Aquilo também eu fazia...

Água benta — Material que, a par da presunção, é tomado de acordo com a vontade de cada um. Em Portugal, mesmo com crise de vocações e com crise de clientela nas igrejas, presunção e água benta têm futuro garantido.

Autismo — Desordem do foro neurológico; compromete a capacidade de comunicação. Não compromete, porém, a inteligência (lembram-se de Rainman, o filme?). Aquilo de que os políticos se acusam mutuamente (e desadequadamente) de padecer. Porém, neste segundo caso, como se percebe pela usual, estrutural, epidémica e manifesta falta de inteligência, não se trata de autismo, mas de bolha.

Automobilista — Aquele que conduz um automóvel. Aquele que dirige. Entre nós, dada a nossa propensão a deixar-nos conduzir, é confundido com líder e, por vezes, com ditador. Daí que automobilista seja entendido e comummente aceite como aquele que impõe a sua vontade. Vem daí a sua legitimidade em andar na estrada como se estivesse sozinho em casa.

Automóvel — Literalmente, aquele que autonomamente se move. Não confundir com objecto de arremesso ou toiro. O primeiro porque, por definição, o objecto arremessado não se move sozinho: é movido; o segundo porque, apesar de o toiro também poder, em essência, ser definido como um auto-móvel, visto mover-se por si mesmo, não cumpre a função de veículo motorizado. Embora haja muita gente a tourear nas estradas, resolvendo no asfalto aspectos menos interessantes da sua índole, nem o toiro é automóvel nem o automóvel devia ser utilizado para andar a fazer faenas aos outros. Ainda assim, é o que se verifica as mais das vezes. Talvez por isso, e dada a grande taxa de mortalidade nas nossas estradas, persista, nas vozes tremidas de certos fadistas, o sucesso do célebre fado que lamenta: “Foi um toiro que o matou”.

Autonomia —  Do grego auto + nomos, a palavra significa, na origem, território ou lei própria. Exercício de reflectir e agir por si mesmo. Usada sobretudo no domínio da ciência política ou da filosofia, em Portugal a autonomia tem um uso comum muito mais prosaico, reduzindo-se, nos últimos anos, à tecnologia de ponta. Deixando de ser a capacidade de independência judicativa, territorial ou económica passou a ser o tempo que o telemóvel aguenta em conversas… ou parado. Eventualmente, a autonomia pode também ser aplicada à bateria dos computadores portáteis ou ao depósito do automóvel. No aspecto automobilístico, convém lembrar a existência, em Portugal, de um tipo particular de autonomia. A que se passa em relação ao código da estrada. Cada cidadão português portador da licença de condução tem o seu próprio sentido de autonomia, que se confunde com o conceito de privacidade. Tirando isso, nada mais interessa.

Autoridade — Qualidade de autor; aquele que sabe do seu valor. Que tem saber e experiência própria. Exemplo: fulana é uma autoridade na matéria. Antónimo de autoritário. Noutro sentido, autoridade é também aquele que age para a manutenção da ordem. Polícia. Em Portugal, dado o sucesso da verosimilhança, no primeiro sentido do termo também serve aquele que dá ares de saber alguma coisa. Suspeita-se por isso que os lugares de topo, mais próximos dos ventos impantes, se dêem mais ares que os demais. Autoridade máxima. Não confundir com cabeças de vento. Sinónimo de autoritário.

Autoritário — Aquele que se firma numa autoridade excessivamente forte; ditador. Em Portugal, de um modo mais abrangente, todo aquele que tem uma opinião diferente da nossa e que a defende com veemência (ainda que não nos obrigue a pensar como ele). Chato.

Autoritarismo — Modo de impor aos outros a nossa vontade mesmo que se encontre isenta de razão. Associado ao poder ilegítimo. Os políticos profissionais são com frequência acusados de padecer desse defeito. Porém, em Portugal, o deficit democrático faz com que todos vejamos com maus olhos o facto de haver opiniões diversas das nossas. Num extraordinário passe de mágica, o autoritarismo dos outros constitui uma excelente desculpa para a nossa cobardia. Exemplo: eu devia dizer-lhe o que penso, mas o gajo é um autoritário e não me deixa. Isenção da capacidade de usar a liberdade. Como é que era a máxima? O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.

 

B

Bolha — Substantivo. Pequena zona de ar rodeada de matéria por todos os lados. A bolha, também conhecida por veneta, referencia exemplarmente a capacidade de decisão dos portugueses. Modo pessoal e intransmissível de ser. Funciona por impulso e não por razão. Apetite súbito. Exemplo: ele fez aquilo porque lhe deu na bolha. O contrário de ser criterioso.

 

C

Carta — Documento escrito, geralmente de natureza íntima, pessoal e intransmissível. O seu uso mais comum, em tempos de email e de SMS, e com a excepção das cartas de marear e das de jogar, reduz-se actualmente à Carta de Condução. Talvez resida aí a explicação para os portugueses terem uma tão pessoal noção do código da estrada e das normas de civilidade ao volante. Quem lhes passou a carta de condução não lhes explicou que o que aí se assume é um princípio de boa vizinhança. Uma espécie de não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. Ou mesmo, como diria o Bernard Shaw, não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti: os gostos deles podem não ser os mesmos. Adiante. Não lhes explicaram, portanto, coisas essenciais. Ou seja, passaram-lhes a carta mas não lhes passaram cartão.

Coerência — Qualidade daquele(a) que não cai em contradição. Diferente de teimosia. Coerente é o(a) que procura a lógica do pensamento e age em conformidade. Em Portugal, coerência é pensar sempre o mesmo, do princípio ao fim da vida, mesmo que a experiência nos ensine que estamos a pensar mal. Antónimo de traidor. Sinónimo de burro.

Competência — Definição geral: correcto cumprimento do exercício das funções atribuídas. Exercício de rigor. Profissionalismo. Definição portuguesa: atitude de desafio adoptada por alguns indivíduos, com sede de protagonismo. Antónimo de competências. Os que são competentes no que fazem raramente invocam as suas competências. Os que têm sempre as competências na boca são geralmente os que matam qualquer hipótese de competência. Exemplo: Não posso fazer isso (mesmo que o saiba e possa fazer) porque não é das minhas competências.

Contemporâneo — Aquilo que é do nosso tempo. No plural, passam na RTP1 e são uma das formas mais estupendas de limpeza hepática. Em hipericão, do melhor que tenho visto. Chapelada.

Coragem — Literalmente, o que move o coração. Valentia. Ousadia. Nobreza de carácter. É corajoso(a) aquele(a) que confronta o medo, o perigo, as ameaças. Em Portugal, a coragem tem duas grandes manifestações nacionais: a tourada (e as largadas de touros) e a condução a 250km/hora.

Cultura — Nome genérico dado a todas as práticas humanas, desde o cultivo do solo, às crenças, valores, regras, usos, comportamentos, acções, criações. Íman turístico e valor económico já estudado como gerador de riqueza, seja pela gastronomia, música, arquitectura, literatura, artes plásticas, teatro, qualidade do azeite, do vinho, das praias ou limpeza das ruas. Os países que acarinham a cultura ganham com ela. Os que a desdenham não só não a querem comprar como a perdem. Em Portugal, para quem tiver dúvidas quanto ao grupo em que nos encontramos, basta respirar. Domina o cheiro a naftalina e a formol. Quando não a pólvora: sempre que ouço falar de cultura, puxo da pistola.

Criatividade — Capacidade de criar, inventar ou inovar em qualquer área do saber humano. As áreas mais citadas e valorizadas internacionalmente são as artísticas, científicas e desportivas. Em Portugal, este conceito abrange sobretudo o domínio do quotidiano e exerce-se na capacidade resiliente de dizer não a todas as formas de originalidade. As demais áreas, valorizadas internacionalmente, são entre nós consideradas sobrevalorizadas, sendo por isso geralmente enquadradas no conceito de exibicionismo. Embora alguns estrangeiros ignorantes (e alguns portugueses com a mania) tomem a nossa criatividade por imitação (veja-se a apresentação das actrizes nos Globos de Ouro, completamente diferente da fórmula usada este ano na cerimónia de entrega dos Óscares), a nossa criatividade é que a boa. Sai mais barata e comporta muito menos riscos.

Crise — Palavra ambivalente. O I Ching afirma que é nos momentos de crise que se vêem os grandes homens. A culpa nacional prefere cultivar a máxima que nos momentos de crise ainda se vê menos (sejam grandes homens ou o que quer que seja) do que nos de prosperidade. Desculpa perfeita para não fazer nada. Que grande alívio, esta crise!

Critério — Do grego kriterion, que significa norma de julgar, capacidade de distinguir o verdadeiro do falso. Dado usado para a avaliação ou escolha. Norma de confronto, comparação. Em Portugal, é geralmente confundido com perda de tempo.

Criterioso — Aquele tem critérios, normas. Para os que têm conhecimento do étimo, o termo é tomado como sinónimo de honesto. Em Portugal é, contudo, geralmente confundido com maniento ou obcecado, sendo por isso usado como insulto. Chato de merda.

Crítica — Capacidade de julgar, de avaliar. Exercício do exame racional isento de preconceitos. Pressupõe, por isso, capacidade de formação, informação e análise que não apenas é capaz de julgar o valor do que é avaliado como, também, de produzir um raciocínio dotado de algum valor. Estando o valor bastante desvalorizado entre nós a crítica vem fenecendo, bastando para nós o muito mais intuitivo e sadio uso da maledicência.

Culpa — Conceito religioso relacionado com a queda, a falta original. Diferente de responsabilidade, conceito laico que tem apenas como pretensão a indicação do autor (responsável) de uma acção. Em Portugal, talvez por vivermos num Estado tendencialmente laico há menos de 100 anos, a responsabilidade tem escasso uso; o português prefere a culpa, sobretudo para se livrar dela. Talvez por a usar em termos esmagadores, absolutos: eu não tenho a culpa. Mal amada, a culpa permanece como no velho adágio popular em que se refere que morreu solteira.

Glossário de generalizações, parte II

D

Desenrasca — Substantivo masculino. Tradicionalmente considerado a grande valia do português. Estudos recentes sustentam, porém, que o reiterado falhanço no uso da cabeça provoca atrofia a vários níveis.

Desviar-se — Verbo, de raízes dúbias e ancestrais, claramente caído em desuso, e que anuncia a necessidade de o sujeito se afastar de um obstáculo. Em Portugal, raramente  é usado na primeira pessoa (do singular ou do plural), ficando sempre para o(s) outro(s) a observação desse procedimento claramente incomodativo. Servindo à perfeição a máxima filosófica do quem está, está; quem vai, vai, o uso do verbo na sua forma reflexa reflecte assim o nosso sossegado descaso perante a partilha do espaço comum. Exemplo do uso do verbo: Eles que se desviem.

Deus — Conceito abrangente de que nos socorremos quando a vida nos corre mal, quando corre bem e quando temos dúvidas. E quando não queremos ter a culpa das nossas acções. Já muita coisa se escreveu à cerca de deus. Provavelmente só falta falar num atributo específico da sua natureza: tem as costas largas.

Difamação — Fazer o mal sem olhar a qual. Exercício perfeito para quem quer mandar umas bocas só porque sim. Não exige confirmação, confrontação, nem reflexão. Pré-congelado do juízo crítico. Também sinónimo de inércia do pensamento. Para quê pensar nas consequências, se pode divertir-se tanto no processo? Diga agora, pense depois. Ou nunca. Ideal para ser usado em países com baixa literacia e nula capacidade reflexiva. Em épocas mais dramáticas já levou muita gente à fogueira. Agora liberta menos dióxido de carbono mas continua a ser igualmente letal.

Doutor — Adjectivo de uso epidémico em Portugal. Também usado como substituto de título nobiliárquico ou como primeiro nome: “O meu nome é Doutor X…”. Aquele cujo maior objectivo na vida é tirar um curso (qualquer curso), para poder apresentar-se como tal e para poder ter as letras Dr. no livro de cheques e ser tratado com maior deferência nos lugares públicos, em especial em funções que em nada se relacionam com o título que ostenta, como quando vai à mercearia, por exemplo.

 

E

Escrúpulo — Exercício da dúvida; consciência, hesitação ou inquietação. Aparece sobretudo num espírito crítico e armado de ética. Excelente guia para a ambição, torna-a numa postura comedida, em que os fins não justificam os meios. Em Portugal, é visto quase exclusivamente como um embaraço ao sucesso. Escrupuloso é, portanto, sinónimo de parvo. De alguém que deixa passar as oportunidades. Fatalidade. Mal do destino. Exemplo: coitado, é boa pessoa.

Ética — Em geral: observação dos princípios que orientam o comportamento humano no respeito pelos valores e pelas normas sociais. Princípios gerais de boa conduta. Assunção geral de que não vale mesmo tudo menos tirar olhos. De que os outros devem ser considerados fins em si e não meios para atingir um fim. Em Portugal: conceito elástico que se aplica de acordo com as conveniências. Se, dado um determinado objectivo, for preciso dobrá-lo e até parti-lo, não há qualquer inconveniente. Caso contrário, a ética não passa de um empecilho. Ou de uma mania.

 

F

Falta de educação — Modo simplista português de usar conceitos mais complexos e rigorosos como a frontalidade e, por vezes, também a independência. A confusão tão vulgar entre nós resulta de simples desatenção, já que a má educação se manifesta claramente na maneira abrutalhada de falar e de se dirigir aos demais, bem como no uso ostensivo e invasivo do silêncio. Ausência absoluta de reconhecimento de qualquer norma comum de civilidade. Em Portugal, a má educação grassa, por ser considerada sinónimo de qualidade. O seu uso dá ares de se ser mais fino, mais importante e melhor profissional. Se é bruto é porque é bom. Sinal exterior de sucesso e estatuto.

Fobia — Ódio, rejeição, obsessão. Diferente de mania. Exemplo: um homofóbico não é um tipo com a mania dos homossexuais. Pelo contrário. Vejam lá se percebem isso de vez. Ou então percebam-se de vez.

Frontalidade — Qualidade do que é frontal; que diz as coisas pela frente. Em Portugal, dada a falta de prática da sinceridade, confunde-se frontalidade com mera falta de educação. Mas não se iludam; frontalidade não é isso. É mesmo dizer as coisas de um modo directo.

Futebol — Visto em todo o mundo como desporto, em Portugal é, simultaneamente, um tema de debate e um problema nacional. Karma português. Início de quase todas as conversas. Ou para quebrar o gelo, ou porque não há mais assunto. Ou para evitar outros assuntos. Fim de quase todas as conversas.

G

Gosto — Pessoal mas transmissível. Aquilo que mais se discute. Mas que menos se gosta de discutir. Verbo maltratado e desrespeitado. Os gostos podem variar, mas quando se gosta é sempre com “de”. Gosta-se de alguém ou de alguma coisa. E mesmo quando não se gosta é com de. Gosto de gatos. Não gosto de gente estúpida. Também não gosto de gente que usa o verbo gostar sem de. Questões de gosto. E de gramática.

Grama — Apesar de terminar em a, não é um substantivo feminino. Unidade de medida de massa (vulgo, peso), o grama é masculino. A grama só existe no Brasil, onde serve para repousar ou passear. Cá, dá pelo nome de relva. Quanto ao fiambre, queijo, presunto ou outros petiscos, pedem-se aos duzentos, trezentos... gramas. Vá lá, nem tudo é unisexo.

Gramática — regras de uma língua que esclarecem o seu bom uso e possibilitam a comunicação. Em Portugal, a gramática é considerada uma maçada, e dado o seu decorrente desuso os problemas de comunicação têm aumentado exponencialmente. (Ex-po-nen-cial-men-te: para alguns portadores de recentes graus de licenciatura, quer dizer que que são bués.)

Enquanto preparo algumas notas...

... vou partilhando convosco alguns textos que escrevi já há uns anos, sobre o mau uso do português. Nunca os consegui publicar porque me diziam sempre que eram "giros" mas que não interessavam aos leitores, por serem muito específicos. Deve ser o mesmo problema que faz com que continuemos a falar mal a língua que bebemos com o leite materno. 
Esta mania de que falar mal português não é um problema é uma das minhas maiores figadeiras. Por isso sigo com apreço o trabalho do José Mário Costa e da sua equipa do Ciberdúvidas e do programa Cuidado com a língua. Daqui o meu apreço e o meu agradecimento pelo excelente serviço que estão a prestar. Assim lhes prestem a devida atenção.

Os jogos do logo

 No princípio era o Verbo. Vem escrito na Bíblia. Não que no princípio tudo se resumisse à gramática, é claro, mas que no princípio era o ser. Não cabe aqui discorrer sobre essas importantes questões teológicas, mas apenas lembrar a vontade de revelar. A linguagem, ao nomear o mundo, não se limita a mostrá-lo. De facto, cria-o. Como todos sabemos, semelhante tarefa nem sempre se demonstra fácil. O logos que os gregos inventaram tinha, assim, essa nobre missão: em si reunia a palavra, a razão, e o próprio mundo — expressão de uma razão divina que o organizara. Os cristãos, na senda da tradição bíblica, chamaram ao logos o verbo de que já falámos. O conceito, guardião de múltiplos tesouros, acrescia-se de dificuldades interpretativas jamais completamente aclaradas com o correr dos séculos.

A língua portuguesa, herdeira de muitas outras, embora principalmente do latim, tem também as suas costelas gregas e delas aprovou o uso teológico e filosófico do logos, assim mesmo tomado simples ou em compostos como a biologia, filologia, meteorologia, e outros. Não satisfeitos, porém, com esse uso comum a outras línguas, os portugueses resolveram dar ao logos um destino singular.

Assim, surgiu o logo. Longe, contudo, de por perda de plural, se ter simplificado, o logo arvorou-se de importâncias, determinado a não desmerecer a memória complexa de tão gloriosa raiz. E eis que surge toda uma riqueza que não deixa de confundir os estrangeiros. Se nunca pensou nisso, e a pintura do caso lhe parece exagerada, tente então explicar o que significa logo. Pois é; pode ser mais tarde, /imediatamente/assim que, e até portanto/por conseguinte.

Não lhe parece? Então vejamos.

Quando começa a Primavera aparecem logo muitas pessoas com alergias. e algumas delas até ficam irritáveis. O meu vizinho B. é uma delas. Ainda hoje, ao chegar a casa, o encontrei no átrio. Passei por ele e cumprimentei-o mas ele não me respondeu. Logo, ou estava mal disposto ou distraído, porque normalmente é muito afável.

Logo que cheguei a casa o telefone tocou. Era M. a convidar-me para ir ver uma peça no dia seguinte. Como gosto muito de teatro disse-lhe logo que sim.

No dia seguinte, de manhã, telefonei-lhe para confirmar. Perguntei-lhe:

— Então, já tens os bilhetes?

— Ainda não. — respondeu. — Só logo é que os vou comprar. Vou logo a seguir ao almoço. Telefono-te logo a confirmar. Até logo.

Então? Agora já lhe parece que não houve muito exagero nas pinceladas acima ensaiadas? Mas, sim, podemos concordar que na maioria dos casos referidos, o uso, iluminado pelo contexto, até é evidente. O único que não é tão claro é o do momento em que M. afirma: "Telefono-te logo a confirmar." Porque, aqui, este logo é quando? Logo a seguir à compra? Logo mais — mais para o fim da tarde? Logo se verá. Mas aqui temos um logo novo: o do momento exacto. Ou da hora agá. Em que ficamos, então? É claro: nós podemos sempre esclarecer a situação, mas a graça da história está precisamente na não evidência.

E não são apenas os estrangeiros à língua que a notam. Também nós temos necessidade de aclarar, logo de início, algumas frases, dizendo desde logo: telefono-te mais logo; enfim, ligo-te logo que possa…

No até logo não surgem dúvidas de ser até umas horas mais tarde; qualquer encontro para daí a menos que horas fica cingido a um magro até já.

Postura mais alargada tem o Brasil. Também, não é caso para menos. Em país de tão larga geografia, porque havia a expressão de ficar atrofiada? Aí, quando um brasileiro diz até logo, não significa que seja até daí a umas horas, mas até mais ver, ou até um dia, até à vista, reencontro de data incerta mas seguramente distante no tempo.

Enfim, como podemos observar, o logos inicial trouxe-nos muita riqueza. E se, mesmo singularizado, ele se pluralizou de significados, talvez tenha sido apenas para nos revelar mais facetas de si e de nós mesmos. Assim se espera, pelo menos. Enfim: logo veremos.

E.F.

 

INFERNOS

Quando ocorreu o bíblico episódio da torre de Babel, decerto ninguém poderia supor que as consequências viriam a ser tão estranhas e complicadas. Só para recordar a história, quando os homens tentaram construir uma torre que chegasse ao céu, Deus, enfurecido, resolveu destruir-lhes a obra e gerar a confusão, fazendo com que passassem todos a falar línguas diferentes.

O que não vem na Bíblia, depois, diz respeito à criação dessas línguas e à lei das compensações. Assim, aos chineses calhou uma escrita complexa, mas uma gramática genialmente simples. Quanto a nós, a história é diferente. O português tem uma gramática bem mais complicada, mas também é certo que alguma coisa teria de compensar a simplicidade da escrita alfabética. Para contrabalançar, então, somos atacados pelos tempos verbais. Felizmente, dizêmo-los de ouvido porque os conhecemos desde o berço, sendo assim poupados aos dramas de uma aprendizagem em idade adulta.

Por isso, fazemos essa ginástica verbal com toda a desenvoltura. Articulando múltiplos passados, presentes e futuros. Eu fui, eu ia, eu tinha ido, acabei de ir, se eu tivesse ido… etc.; eu faço, eu estou a fazer (ou estou fazendo), talvez faça, etc.; e direi, vou dizer, quando disser, hei-de dizer… e por aí fora.

Suficiente para enlouquecer, com justa causa, qualquer chinês, habituado a pensar apenas no infinitivo dos verbos, indicando o tempo com um antigamente, hoje ou amanhã, ou ontem, ou um dia. Contudo, também é verdade que as sementes de loucura se podem instalar igualmente entre nós, pondo a nu as tais chatices decorrentes do episódio citado no início.

Tomemos a construção "haver de". Aparentemente, não tem nada de mais. Todos nós sabemos que, quando dizemos "eu hei-de ir ao Japão, um dia" não estamos a expressar senão uma intenção. Havemos de o fazer. Um dia. Quando? Desconhecemos. Mas, pelo menos, a intenção existe. O uso desta construção põe, porém, alguns problemas. Não na intenção, mas na conjugação. É um verbinho traiçoeiro o "haver", irregular já de si e ainda por cima de preposição às costas, tipo estudante de mochila. E nós lá vamos embatendo nele, como na estudantada em autocarros apinhados.

E afinal é assim: eu hei-de, tu hás-de, ele há-de, nós havemos de (vá-se lá saber porque não há hífen neste caso), eles hão-de. É assim e nada tem a ver com coisas arrepiantes como o "eles hadem vir…", ou o "depois hades contar-me todas as novidades…". É que o que se conjuga, em qualquer língua, são os verbos e nunca as preposições. Neste caso, o verbo é "haver". O "de" é mera preposição. Assim, hadem e hades são realidades obtusas. E, além do mais, dadas a confusões. Se hadem é coisa que não existe em português (diz-se "hão-de" e nunca "hadem"), quando se chega ao "hades", já é diferente. Existir, existe. Com o mesmo som, mas com maiúscula. O Hades. Só que nada tem de gramatical. É apenas o reino dos mortos, o nome do inferno, na mitologia grega. E também o nome do deus que reina nesse lugar de morte.

É pois largamente preferível dizermos a um amigo "depois, hás-de contar-me todas as novidades", do que pronunciar o tétrico e infernal "hades contar-me…". Por um lado, porque "hás-de" é a maneira correcta de falar. E por outro, porque apesar de o Hades estar cheio de boas intenções, o amigo pode não achar graça.

 

E.F.

Para dar cabo ou conta de nós

Por entre as glórias cantadas e apregoadas do nosso passado nacional, a dobragem de cabos sempre foi daquelas questões de honra a recordar e a evocar. Quanto mais não fosse, em situações de algum tipo de salão, para sublinhar o conhecimento da história pátria, mesmo que — ou sobretudo se — mais nenhum houvesse. Assim, nomes e cronologia eram ostentados a título de orgulho pessoal. Logo, de Lagos e com direito a registo no guiness por ter sido o primeiro, Gil Eanes e o Cabo Bojador. Depois outros, alguns com certo pendor a S. João Baptista, dados ao renomear de geografias velhas, como Bartolomeu Dias que, uma vez ultrapassadas as tormentas, resolveu dar o caso por pequeno e passou a chamar ao Cabo o da Boa Esperança. Mas chega de exemplos.

Há, no entanto, a considerar que semelhante obstinação em dobrar cabos acabou por se voltar contra nós. E com a vocação marítima parcialmente esquecida, as coisas passaram para um registo mais firme. De pés na terra. Talvez por isso, entre nós, e apesar de uma herança histórica, que tanto se reclama como país de marinheiros, haja ainda tanta gente a falar das cordas com que se amarram barcos, desconhecendo afinal, que todas as amarrações são feitas com cabos (ainda que de natureza diversa da dos citados acima), já que a bordo, de acordo com a gíria naval, apenas há três cordas. A saber: a corda do sino, a corda do relógio, e acorda que está na hora.

Já se vê, portanto, que os cabos, por muito dobrados e bem passados que estejam, ainda são capazes de ser o cabo dos trabalhos. Sobretudo quando — quiçá por vingança de tão específico desconhecimento vocabular — nos apanham pela traiçoeira via da gramática. Descontraídos e sem temer monstros, tempestades e marés vivas, vamos alegremente caindo na armadilha. E assim é ouvir o pessoal a afirmar com descontração e bonomia:

Ó amigo, chegue-se pra lá que eu assim não cabo!

Ou então:

Vês como emagreci? Já cabo outra vez nesta roupa!

E etc., etc., etc.

É certo que antigamente — quando ainda se usavam as mulheres gorduchas — às infelizes às quais calhava um par de pernas delgadas, logo se fazia ouvir a piada de não poder passar por uma certa cidade do Norte senão ainda aí lhes ficavam com elas para cabos de facas. Porém, no “eu cabo” acima referido não há cabo de faca, cabo eléctrico, cabo de mar ou cabo de esquadra que lhes valha. Nem gramática que nos salve. Porque cabo, como forma verbal do Presente do Indicativo, é coisa que não existe em português. O que existe, isso sim, é caibo.

E não vale a pena fazer de conta que não se ouviu ou que se pode disfarçar. É que depois há toda uma série de outras situações que saem directamente desta. Por exemplo, no Presente do Conjuntivo. E, desta vez, por regra da língua, espalhando-se generosa e democraticamente por todas as pessoas da conjugação: para que eu caiba, para que tu caibas, para que ele caiba, para que nós caibamos, para que vós caibais, para que eles caibam

Também não vale a pena aquele triste argumento de que assim não soa bem. A gramática não se incomoda com o domínio dos sons. A menos que esse domínio se chame fonética — país com regras próprias, que não vêm agora ao caso.

Assim sendo, mesmo não soando bem aos menos atentos ou acostumados, paciência. A língua tem manias que as nossas manias tantas vezes desconhecem. Por isso, deixemos lá as estranhezas. E deixemos os cabos onde eles pertencem. Ou seja — e sem desprimor para as esquadras — deixemo-los, de preferência, no mar. Entre barcos e marés, lugares poéticos onde as únicas cordas são as que já sabemos. Para que todos caibamos melhor nesta língua de tantos amores e rumores.

E.F.

Xis, ou o lugar do mistério

Em termos de pronúncia, o português não é uma língua óbvia. É verdade que não chega às confusões do inglês, mas, ainda assim, certas letras nossas teimam em guardar mistérios que desnorteiam alguns dos que aprendem o nosso idioma como estrangeiro.

As vogais estão no grupo dos quebra-cabeças, com a sua pronúncia nem sempre evidente. Se discorda, leia em voz alta: eu como, tu comes, ele come, nós comemos, eles comem… E: eu bebo, tu bebes, ele bebe, nós bebemos, eles bebem… e depois tente arranjar uma explicação para todas as variantes das vogais aqui salientadas.

Com as consoantes, o caso muda de figura, já que há regras a indicar o caminho, em quase todas as situações. Porém, não poderia faltar uma complicaçãozinha.

O Xis, por exemplo, o tal que nos mapas marca o sítio, na vida real raramente aparece como elemento clarificador. Que o digam os matemáticos ou todos aqueles que já alguma vez na vida se confrontaram com equações. Também nós nos podemos queixar dos trabalhos a que o Xis nos obriga, caindo em situações desagradáveis, pronunciando obtusamente a misteriosa letra.

À primeira vista, a culpa não nos cabe. Porque é que a escorregadia consoante havia de ter cinco variantes fonéticas e, ainda por cima, passar sem o apoio de umas pequenas e claras regras para nos facilitar a vida?

Infelizmente, o caso é mesmo assim. Regras absolutas e inequívocas, não há. Clareza também não. Vejamos: o Xis pode ter o som de ch como em xis, xadrez, Xabregas, xaile, bruxa, México; o de ç como em próximo, trouxe; o de s como em exposição, sexta; o de z como em exemplo, exame, exacto, êxito; e, finalmente, o de cs como em fixar, anexar, sexual, tóxico, intoxicação, intoxicado…

Os primeiros casos têm provado não causar dúvida. Todavia, a coisa complica-se quando chegamos aos últimos. E se ainda não chegámos ao ponto de dizer ou ouvir falar em educação "sechual", já o mesmo não acontece quanto a toda a família dos "tócsicos", rapidamente transpostos para a genealogia dos tós e dos chicos. Deste modo, são mais que muitos os acidentes que provocam "intochicações"; pessoas "intochicadas" que deram entrada em hospitais, bem como avisos contra produtos "tóchicos".

O mais grave destas "intochicações" é que muitíssima gente pensa ser assim mesmo que se diz. Há até quem sustente versões combinadas e afirme a obrigatoriedade de se dizer “tócsico” de braço dado com a possibilidade do “intochicado” e da “intochicação”. Não haver uma sinaléctica evidente para as confusões do Xis é uma coisa; atribuir-lhe costas largas a este ponto já é abuso de confiança. Por muitos mistérios que a nossa língua comporte, tudo tem limites. Para que a confusão não se instaurasse mais do que o considerado absolutamente indispensável, criaram-se os dicionários. Ao contrário do que se poderia pensar, não são particularmente difíceis de encontrar. Existem à venda variadíssimas possibilidades de esclarecimento sob a forma de uma agradável pluralidade de edições. Manuseando um desses exemplares, lá encontraremos as respostas às nossas maiores inquietações no domínio fonético. E, entre esses preciosos esclarecimentos, lá está anotada a correcta pronúncia do Xis. E sempre que toma os sons de "cs" lá surge a informação. Não se poderá pois desculpar o erro acusando a falta de meios.

Com esses utensílios tão práticos, o Xis passa a integrar uma “simbologia” de opostos. Oscilando entre os segredos das histórias, a afirmação de Indiana Jones aos alunos de que na vida real ele nunca assinala o lugar, e a fácil descoberta de que, no fim de contas, é um mistério que facilmente se esclarece. Como muito bem sabem os matemáticos.

 E.F.