A
Acentos — Fazem parte do corpo das palavras. Têm uma função. Não são elementos decorativos. Normalmente esquecidos pelos mesmos inventivos que depois põem bolas em cima dos ii.
Ambição — Juntamente com o optimismo, uma das forças que faz andar a humanidade. É o sentimento que nos faz querer mais, ultrapassar os obstáculos, desejar, sonhar. Para não nos lançar na selvajaria, deve ser temperada com escrúpulos. Em Portugal, é sempre vista como uma malfeitoria. Já assim era entendida no latim, que lançou esta maldição sobre o desejo. O que faz uma definição nefanda...
Antigamente — Advérbio de modo. Do modo correcto. Antigamente é que era bom. Tempo indefinido mas claramente definido no passado. O antigamente é sempre garantido. Os gregos chamavam-lhe a Idade do Ouro. Em Portugal é simplesmente antigamente. Vagamente depois do tempo em que os animais falavam e claramente antes de nos tornarmos adultos. Antigamente tudo sabia melhor. As pessoas eram mais simpáticas. Lia-se mais. Havia menos insegurança. E mais liberdade. Quando eu parar de rir, vou voltar à lista.
Ar — Aquilo que respiramos. Mas também aparência. Verosimilhança. Apesar de ninguém viver dele (com a excepção dos fazedores de leques e da indústria do ar condicionado), o ar condiciona a nossa vida. Faca de dois gumes. Porque ter ou dar(-se) ares (de alguma coisa) é algo a desejar e a temer. Exemplos: Fulano tem ar de parvo. Sicrano tem ar de boa pessoa. Fulana dá-se ares de estrela de cinema. Aquele dá ares de rico. Não precisamos de ir mais longe. O ar é tudo. Para quem não é, ar basta.
Artista — Jeitoso, habilidoso. Trafulha. Quando morto, é bestial; quando vivo, não passa, com sorte, de grande besta. Inapto e inerte. Equivalente a intelectual, mas sem a cabeça. Os antigos é que eram bons. Faziam um trabalho escorreito, bem feito, com claro saber do ofício. E que se percebia, que tinha mensagem. Os de agora não sabem fazer nada, só fazem coisas sem nexo para chatear o público. Nós. Porque é que aquilo é arte? Grandes artistas! Aquilo também eu fazia...
Água benta — Material que, a par da presunção, é tomado de acordo com a vontade de cada um. Em Portugal, mesmo com crise de vocações e com crise de clientela nas igrejas, presunção e água benta têm futuro garantido.
Autismo — Desordem do foro neurológico; compromete a capacidade de comunicação. Não compromete, porém, a inteligência (lembram-se de Rainman, o filme?). Aquilo de que os políticos se acusam mutuamente (e desadequadamente) de padecer. Porém, neste segundo caso, como se percebe pela usual, estrutural, epidémica e manifesta falta de inteligência, não se trata de autismo, mas de bolha.
Automobilista — Aquele que conduz um automóvel. Aquele que dirige. Entre nós, dada a nossa propensão a deixar-nos conduzir, é confundido com líder e, por vezes, com ditador. Daí que automobilista seja entendido e comummente aceite como aquele que impõe a sua vontade. Vem daí a sua legitimidade em andar na estrada como se estivesse sozinho em casa.
Automóvel — Literalmente, aquele que autonomamente se move. Não confundir com objecto de arremesso ou toiro. O primeiro porque, por definição, o objecto arremessado não se move sozinho: é movido; o segundo porque, apesar de o toiro também poder, em essência, ser definido como um auto-móvel, visto mover-se por si mesmo, não cumpre a função de veículo motorizado. Embora haja muita gente a tourear nas estradas, resolvendo no asfalto aspectos menos interessantes da sua índole, nem o toiro é automóvel nem o automóvel devia ser utilizado para andar a fazer faenas aos outros. Ainda assim, é o que se verifica as mais das vezes. Talvez por isso, e dada a grande taxa de mortalidade nas nossas estradas, persista, nas vozes tremidas de certos fadistas, o sucesso do célebre fado que lamenta: “Foi um toiro que o matou”.
Autonomia — Do grego auto + nomos, a palavra significa, na origem, território ou lei própria. Exercício de reflectir e agir por si mesmo. Usada sobretudo no domínio da ciência política ou da filosofia, em Portugal a autonomia tem um uso comum muito mais prosaico, reduzindo-se, nos últimos anos, à tecnologia de ponta. Deixando de ser a capacidade de independência judicativa, territorial ou económica passou a ser o tempo que o telemóvel aguenta em conversas… ou parado. Eventualmente, a autonomia pode também ser aplicada à bateria dos computadores portáteis ou ao depósito do automóvel. No aspecto automobilístico, convém lembrar a existência, em Portugal, de um tipo particular de autonomia. A que se passa em relação ao código da estrada. Cada cidadão português portador da licença de condução tem o seu próprio sentido de autonomia, que se confunde com o conceito de privacidade. Tirando isso, nada mais interessa.
Autoridade — Qualidade de autor; aquele que sabe do seu valor. Que tem saber e experiência própria. Exemplo: fulana é uma autoridade na matéria. Antónimo de autoritário. Noutro sentido, autoridade é também aquele que age para a manutenção da ordem. Polícia. Em Portugal, dado o sucesso da verosimilhança, no primeiro sentido do termo também serve aquele que dá ares de saber alguma coisa. Suspeita-se por isso que os lugares de topo, mais próximos dos ventos impantes, se dêem mais ares que os demais. Autoridade máxima. Não confundir com cabeças de vento. Sinónimo de autoritário.
Autoritário — Aquele que se firma numa autoridade excessivamente forte; ditador. Em Portugal, de um modo mais abrangente, todo aquele que tem uma opinião diferente da nossa e que a defende com veemência (ainda que não nos obrigue a pensar como ele). Chato.
Autoritarismo — Modo de impor aos outros a nossa vontade mesmo que se encontre isenta de razão. Associado ao poder ilegítimo. Os políticos profissionais são com frequência acusados de padecer desse defeito. Porém, em Portugal, o deficit democrático faz com que todos vejamos com maus olhos o facto de haver opiniões diversas das nossas. Num extraordinário passe de mágica, o autoritarismo dos outros constitui uma excelente desculpa para a nossa cobardia. Exemplo: eu devia dizer-lhe o que penso, mas o gajo é um autoritário e não me deixa. Isenção da capacidade de usar a liberdade. Como é que era a máxima? O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.
B
Bolha — Substantivo. Pequena zona de ar rodeada de matéria por todos os lados. A bolha, também conhecida por veneta, referencia exemplarmente a capacidade de decisão dos portugueses. Modo pessoal e intransmissível de ser. Funciona por impulso e não por razão. Apetite súbito. Exemplo: ele fez aquilo porque lhe deu na bolha. O contrário de ser criterioso.
C
Carta — Documento escrito, geralmente de natureza íntima, pessoal e intransmissível. O seu uso mais comum, em tempos de email e de SMS, e com a excepção das cartas de marear e das de jogar, reduz-se actualmente à Carta de Condução. Talvez resida aí a explicação para os portugueses terem uma tão pessoal noção do código da estrada e das normas de civilidade ao volante. Quem lhes passou a carta de condução não lhes explicou que o que aí se assume é um princípio de boa vizinhança. Uma espécie de não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. Ou mesmo, como diria o Bernard Shaw, não faças aos outros o que gostarias que te fizessem a ti: os gostos deles podem não ser os mesmos. Adiante. Não lhes explicaram, portanto, coisas essenciais. Ou seja, passaram-lhes a carta mas não lhes passaram cartão.
Coerência — Qualidade daquele(a) que não cai em contradição. Diferente de teimosia. Coerente é o(a) que procura a lógica do pensamento e age em conformidade. Em Portugal, coerência é pensar sempre o mesmo, do princípio ao fim da vida, mesmo que a experiência nos ensine que estamos a pensar mal. Antónimo de traidor. Sinónimo de burro.
Competência — Definição geral: correcto cumprimento do exercício das funções atribuídas. Exercício de rigor. Profissionalismo. Definição portuguesa: atitude de desafio adoptada por alguns indivíduos, com sede de protagonismo. Antónimo de competências. Os que são competentes no que fazem raramente invocam as suas competências. Os que têm sempre as competências na boca são geralmente os que matam qualquer hipótese de competência. Exemplo: Não posso fazer isso (mesmo que o saiba e possa fazer) porque não é das minhas competências.
Contemporâneo — Aquilo que é do nosso tempo. No plural, passam na RTP1 e são uma das formas mais estupendas de limpeza hepática. Em hipericão, do melhor que tenho visto. Chapelada.
Coragem — Literalmente, o que move o coração. Valentia. Ousadia. Nobreza de carácter. É corajoso(a) aquele(a) que confronta o medo, o perigo, as ameaças. Em Portugal, a coragem tem duas grandes manifestações nacionais: a tourada (e as largadas de touros) e a condução a 250km/hora.
Cultura — Nome genérico dado a todas as práticas humanas, desde o cultivo do solo, às crenças, valores, regras, usos, comportamentos, acções, criações. Íman turístico e valor económico já estudado como gerador de riqueza, seja pela gastronomia, música, arquitectura, literatura, artes plásticas, teatro, qualidade do azeite, do vinho, das praias ou limpeza das ruas. Os países que acarinham a cultura ganham com ela. Os que a desdenham não só não a querem comprar como a perdem. Em Portugal, para quem tiver dúvidas quanto ao grupo em que nos encontramos, basta respirar. Domina o cheiro a naftalina e a formol. Quando não a pólvora: sempre que ouço falar de cultura, puxo da pistola.
Criatividade — Capacidade de criar, inventar ou inovar em qualquer área do saber humano. As áreas mais citadas e valorizadas internacionalmente são as artísticas, científicas e desportivas. Em Portugal, este conceito abrange sobretudo o domínio do quotidiano e exerce-se na capacidade resiliente de dizer não a todas as formas de originalidade. As demais áreas, valorizadas internacionalmente, são entre nós consideradas sobrevalorizadas, sendo por isso geralmente enquadradas no conceito de exibicionismo. Embora alguns estrangeiros ignorantes (e alguns portugueses com a mania) tomem a nossa criatividade por imitação (veja-se a apresentação das actrizes nos Globos de Ouro, completamente diferente da fórmula usada este ano na cerimónia de entrega dos Óscares), a nossa criatividade é que a boa. Sai mais barata e comporta muito menos riscos.
Crise — Palavra ambivalente. O I Ching afirma que é nos momentos de crise que se vêem os grandes homens. A culpa nacional prefere cultivar a máxima que nos momentos de crise ainda se vê menos (sejam grandes homens ou o que quer que seja) do que nos de prosperidade. Desculpa perfeita para não fazer nada. Que grande alívio, esta crise!
Critério — Do grego kriterion, que significa norma de julgar, capacidade de distinguir o verdadeiro do falso. Dado usado para a avaliação ou escolha. Norma de confronto, comparação. Em Portugal, é geralmente confundido com perda de tempo.
Criterioso — Aquele tem critérios, normas. Para os que têm conhecimento do étimo, o termo é tomado como sinónimo de honesto. Em Portugal é, contudo, geralmente confundido com maniento ou obcecado, sendo por isso usado como insulto. Chato de merda.
Crítica — Capacidade de julgar, de avaliar. Exercício do exame racional isento de preconceitos. Pressupõe, por isso, capacidade de formação, informação e análise que não apenas é capaz de julgar o valor do que é avaliado como, também, de produzir um raciocínio dotado de algum valor. Estando o valor bastante desvalorizado entre nós a crítica vem fenecendo, bastando para nós o muito mais intuitivo e sadio uso da maledicência.
Culpa — Conceito religioso relacionado com a queda, a falta original. Diferente de responsabilidade, conceito laico que tem apenas como pretensão a indicação do autor (responsável) de uma acção. Em Portugal, talvez por vivermos num Estado tendencialmente laico há menos de 100 anos, a responsabilidade tem escasso uso; o português prefere a culpa, sobretudo para se livrar dela. Talvez por a usar em termos esmagadores, absolutos: eu não tenho a culpa. Mal amada, a culpa permanece como no velho adágio popular em que se refere que morreu solteira.
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